PÁGINA 1

Página número um - sobre o alto da página, soando como ameaça. O escritor se repreende, vamos, é hora de começar. Também a ocasião de uma ironia travessa, demasiado óbvia embora ele por um momento possa se considerar esperto por isso: não sabendo como iniciar a obra, o escritor vinga-se de seu bloqueio criativo elegendo-o como tema.
Então não vamos falar de nada, e não quero ninguém depois reclamando que o que leu não tinha assunto nenhum. Mas qual a real importância de algo ter sentido? Palavras, gestos, ruas têm sentido, mas a maioria das coisas nesta vida não tem sentido nenhum. Então Deus deve ser tudo, jardineiro, polícia, professor, modelo fotográfico, tudo menos escritor: as coisas que faz não precisam senão existir, tenham ou não razão de ser, existir consiste em não precisar ter sentido.
Não fosse essa ressalva, havia que dar algum prazer ao escrivinhador brincar de Deus... Mas o leitor espera beleza e sentido no que lê, enquanto as obras do demiurgo raramente exibem esses atributos. E quando o fazem, temos então plena razão em falarmos em milagre.
Mas há ainda o vazio inescapável da página um e prosseguindo na metáfora da criação divina "ex nihilo", um Deus minimamente responsável tentará criar o melhor dos mundos possíveis. E o melhor romance ou livro de contos ou a grande coleta de poesia possíveis? pierres menards como nós continuarão tentando escrever essa obra arquetípica, a um tempo irreal pois irrealizável, a outro mais real que qualquer outra coisa que já tenhamos de fato lido ou escrito, uma vez que é essa quimera o que nos instiga a prosseguir preenchendo páginas um ou abrindo um livro numa delas.
Ler, por sua vez, requer um grande investimento de tempo, e por isso ler é cada vez mais difícil nestes dias. Já ouviu falar em "novelblank"? É como se diz quando você chega ao fim de um romance de 500 páginas e já não lembra do que aconteceu até a página 490. Dissem que para a pessoa média, sete dias depois da conclusão de um romance, o "novelblackout" é total. Então todo aquele tempo lendo o livrão foi jogado no lixo, e é melhor mesmo você se ater às informações sobre ele contidas na à sinopse da Wikipedia.
Com um livro breve de contos, penso que o mesmo não ocorrerá: nem o volume de informação é tão grande que ultrapasse nossa capacidade de retenção, nem o tempo dispendido será tão longo para que, sobrevindo a desmemória, se tenha perdido muita coisa. Então me veio a idéia: tenho sete contos a meio escritos, se os completo em sete dias terei um livro composto de sete peças para o leitor ler à razão de um por dia, até que, chegado ao fim, terá lido meu livrinho em uma semana, sem hercúleos esforços.
Resta saber se será possível reescrever tanta coisa em um período tão curto. O Kerouak conseguiu, mas relatando experiências que tinha vivido, trocando nomes aqui e ali, sem precisar queimar os fosfatos criando enredos críveis ou consistentes, e essa, descenessário dizer, é a parte árdua do trabalho. Penso por outro lado em certos romances, cuja complicada escritura reclamou décadas inteiras. Tudo somado, me servirei da dupla abordagem: falarei tanto de gente e lugares que conheço como de quem e onde nunca conhecerei, e ,é claro, deixarei igualmente que falem por si.

OS MENINOS



"Ô moleque maloqueiro, já te disse pra ficar longe daqui, você e os outros bandidinhos". O garoto tentava se desgarrar enquanto o policial suspendia ele pela camisa e dava nele cascudos na nuca. "Cadê os outros piás, tão roubando trabalhador por aí ou ficaram em casa? Por que você não chamou também eles hoje? Tô ligado que você é o chefe. Quantos anos você tem?"
"Treze".
"Treze é?, mostra a porra da certidão, cê tem cara de dezesseis."
Chorando, o menino tirou do bolso traseiro uma carteira de identidade rôta, que confirmava a sua idade.
"Caprichoso você, né? Sua certidão dá nem pra ler direito. Sabe que tirar segunda via paga taxa, maluco? Vai ser preciso não: não te dou três anos e você tá puxando cadeia, só vai precisar da identificação da pianola do inquérito policial. Bandido menino é que nem pau torto, não endireita. Não tem vergonha mesmo! Cadê os teus pais?"
O sargento partia do pressuposto óbvio de que todo mundo tem um pai e mãe se não for filho de chocadeira. Naturalmente, a par dessa verdade biológica, existe o fato de sociedade de que a maioria das crianças hoje nascem em famílias pobres e, entre essas, a grandíssima parcela em famílias mononucleares, como diz o jargão, o pai sumiu ou não reconheceu, e a mãe fodida se vira como pode. E o padrasto é um ou outro cara que, certa feita, se instala na casa, espalha safanões e às vezes gera um irmão e, num outro dia, sem mais aviso, vai embora.
"Não tenho pai. A minha mãe passa o dia na fábrica, é costureira".
"E ela sabe do que vocês fazem, moleque safado?", a cólera do sargento retomou alento ao imaginar uma senhora sozinha carregada do fardo de criar sozinha um trobadinha de uma figa, e aplicou mais uma saraivada de safanões no guri.
"Ai, ai, ai, o senhor não pode bater em mim não, eu sou adolescente".
"Eu bato em quem merece, copiou?, tenho autoridade e dever de profissão de combater a marginalidade. Por quê, bandidinho, cê tá ousando me ameaçar, é? Vai fazer o quê, vai ligar pro Conselho Tutelar? - riu com ironia, "o Conselho Tutelar, seu cabeça de bosta, são três senhorinhas que, atoladas com centenas de procedimentos, mal têm tempo pra arranjar alguém pra comer elas. Essa estrutura toda, três mulheres de meia idade, para uma cidade de milhão e meio de habitantes. É por isso que o seu queridinho Conselho Tutelar conta com a colaboração da Polícia Militar pra dar conta de todos os casos envolvendo infratores. E se você matasse, e eu não duvido de que fosse capaz, não tinha nem vaga pra você no abrigo do Estado. Ficava solto, sob vigilância assistida, livre pra continuar roubando, matando, estrupando. Mas deixa estar. Te disse, em três anos você tá em cana e vai se envolver com criminoso pesado, tóxico, latrocínio, mais um par de meses você vai parar numa desova com a boca recheadinha de azeitonas".
Depois de respirar, prosseguiu, mudando o tom: "Olha, não digo isso porque quero teu mal, não sou de rogar praga nem acredito nessas coisas, digo pra você se concertar, pra evitar o pior".
As garras do sargento já se desenganchavam do corpo do menino. Retomou a inquirição.
"Não suporto mais todo dia vim alguém aqui fazer queixa de roubo, de ameaça. Não tem coisa pior que uma mulher te medir com os olhos e achar que um moleque é mais macho que você, e você um bundão fantasiado de farda que não faz porra nenhuma. Vai pra escola, estuda, rapaz! Constrói teu futuro! Onde você mora?"
"Na Fanny".
"Porra, tão longe assim? O que vem fazer no centro? Roubar uma carteira, um relógio, um tênis de marca? Olha tuas roupas, você nem usa o que rouba. E se fosse pra escola tinha merenda todo dia. O que faz, compra cola, crack?"
"Sim".
"E quem é o teu receptador? Receptador, te explico, é o cara pra quem você atravessa a mercadoria. É o mesmo que te passa as pedras?"
"Ai, seu guarda, se eu digo ele me mata ou vai atrás da minha mãe?"
"Sabe de uma coisa? Você é um puta filho da puta! Um grandíssimo filho de uma puta, isso você é! Como você mete tua mãe na história, ela dando duro pra pôr o que comer na mesa de casa, enquanto você fuma tua paradinha pra ficar sonsão? Sabe o que tua mãe merecia? Que você sumisse, parasse de encher o saco. Dela e de todo mundo", à exaltação seguiram novas agressões, desta vez na forma de chutes, socos no olho, espalmadas no ouvido. O garoto urrava e chorava de dor. Transeuntes começavam a se agrupar curiosos ou assustados diante do posto móvel, mas ninguém ousava indagar nada.
Na cabeça do guarda também passavam outras coisas. Se viu quando menino, o sexto filho numa família pobre, e todos se cobrando um tênis melhor, perguntando se ia nas férias à praia. Ele sempre mentia, pra não parecer um perdedor, mas a verdade é que todas aquelas coisas bonitas ele não compraria nunca, nem se trabalhasse dois turnos como o pai. E o mar ele só viu aos quinze anos, quando levou uma nomradinha na Ilha do Mel com dinheiro juntado do salário de office boy, e lá, depois de fumarem um baseado, comeu uma boceta pela primeira vez. Nunca teve coragem de pedir luxos do seu pai, seu pai diria que era tudo besteira, embora na real não fossem tão bestas assim. Exibir uma camisa de marca era uma questão de moral. E quem botava mais banca também comia mais gurias.
"Olha, piá. Te aviso e sou homem de uma só palavra. Foi a última vez. Foi a última a última vez que quero ouvir falar de você, que quero ver a tua cara de encardido. Se você voltar e aprontar de novo, vou ter que dar um jeito de não deixar você aparecer mais por aqui. Você tá entendendo? Precisa repetir? Quer que desenhe?"
Sentou-se no banco de fibra de plástico que afrontava a pequena mesa branca que cabia no cubículo.
"Desta vez acabamos por aqui, mas da próxima, te dou uma surra como você nunca pensou levar antes. É macho, não é? Uma qualquer surra você agüenta. Mas te garanto: sou faixa roxa de luta livre, uma surra minha não, ninguém agüenta. Chuto a tua cara, quebro os teus dentes, te deixo sem enxergar por duas semanas".
Abriu a porta do casebre, mostrando a calçada:
"Entendido?"
"Entendido sim senhor", o menino se apressou em se retirar para a rua, se contorcendo e cambaleando, chorando de dor.
O cabo Garcez chegou logo em seguida.
"É, a pivetada anda assanhada. Muita oferta de droga. Muita mulher sonsa andando devagarzinho com um salto doze e carregando no braço bolsa de grife, falando num celular caro com o cara que paga as contas dela. Tinha que descobrir quem tá vendendo, cortar o mal pela raiz".
"É, mas acho não que seja prioridade pras egrégias autoridades lá do Olimpo, eles devem ganhar as comissões deles, e nós é que se fode, malandro. Pra nós o servicinho sujo de pegar bandido ralé. Mas ainda sim tem que fazer nossa parte, ou não?"
"E como foi com o piá?"
"A rotina de sempre. Mãe solteira, sub-empregada, desinteressada, o pivete se viciando, tem como parar? E os lojistas gritando na Corregedoria: a Polícia Militar não está fazendo nada, os compradores estão evitando o centro, o faturamento do comércio diminui mês a mês, e com isso o Estado vai empobrecendo com menos imposto e, é claro, a cereja do bolo: menos negócio, menos emprego. Bancada de hipócritas. Mas não sou eu quem vai mudar o mundo, nem você. Ninguém muda o mundo, nem o Bill Gates, o mundo é que vai mudando sozinho".
"Pra melhor ou pra pior?"
"Hum... acho que pra melhor, né? Há dez anos a gente nem votava pra presidente".
"E quando nasce o teu piazinho?"
O Sargento Schaffer tinha 28 anos e estava casado há apenas seis meses com uma Eduarda dos Santos, mulata de olhos arredondados e voz melodiosa. A criança era esperada para aquela semana.
"Cinco, ou são oito? dias de licença paternidade, mané!"
"E você acha, chefe, que vai ter menos trabalho com seu gurizinho que com os pivetes do centro? Hehehe, acho que não, hein..."
"Pode ser. Tanta correria, nem caiu a ficha. Vou ser pai, Garcez, vou ser pai. Eu acho que meu único sonho na vida era ter tido um filho. Criar uma vida, essa é a maior bêncão que nos Deus nos deu. Sermos capazes de criar também. Por mais que a gente seja errado e viva fazendo cagada. Mas Deus é pai e perdoa sempre. Como ele vai ser? Um moleque endiabrado. E seja como for, eu vou acabar sempre perdoando, sempre aceitando ele nos mínimos defeitos. Como o meu pai, que se cansou de me levar pra consertar um osso e que se enfezava quando eu passava as semanas bebendo e fodendo num puteiro com dinheiro fiado. Mas ele sempre acabava me salvando, como Deus nos salva sempre".

***

Quando chegou em casa, a Eduarda repousava na cama.
"Você tem fome, precisa de algo?", preguntou para a mulher.
"Não, brigado amor. Minha mãe está aqui e preparou alguma coisa. Tem na cozinha pra você. Só estou meio sonolenta".
"Quer que desligue a TV?"
"Quero sim".
Ao regressar à sala, sua sogra entrava com um maço de cigarros na mão.
"Desço pra não fumar na frente dela".
Ela encheu um prato e aqueceu numa marmita. Serviu-lhe no sofá e se sentou a seu lado. Teria algo pra lhe dizer?
"Insisto que o nome da criança sou eu que escolho. Não me decidi ainda".
Ela sorriu brevemente. "Não, não é sobre isso, é algo mais delicado".
Prosseguiram olhando para a televisão tagarela mas sem prestar atenção.
"Você sabe que eu recebo uma aposentadoria de um mínimo, não sabe? Com um mínimo não dá pra tirar um empréstimo consignado em folha. É pouco dinheiro, aliás, mas sempre conto com a ajuda das minhas filhas".
Então ela precisava de dinheiro. Pensou nos custos que teria com a criança, era verdade que a caixa pagaria o parto e todos os exames e consultas. Mas gastos imprevisíveis inevitavelmente surgiriam, ou não?
"Eu não quis contar antes por causa do estado da Eduarda, mas o irmão dela se acidentou. Nada tão grave, ele está bem. Mas o carro não anda mais. Como ele é taxista e não pode pagar o conserto, não tem mais como ganhar dinheiro".
"Eu não sabia".
"Daí, o custo do conserto, com um mecânico sério, amigo do meu falecido marido, vai na casa de cinco mil reais. Então pensei em pedir sua ajuda. Se você tira um empréstimo consignado em folha, que tem juros mais em conta, de uns vinte e quatro meses, dava uns duzentos por mês. O Osvaldo lhe repagaria com o dinheiro que fosse ganhando com as corridas, mas, caso faltasse, eu estou lhe garantindo que lhe pago a parcela mensal com a minha renda".
Shaffer estava um pouco cansado para tomar decisões, mas hesitou pouco antes de concordar. Afinal de contas, confiava na palavra da sogra e tinha um aumento de ordenado em vista.
"Garanto que o Osvaldo é ótimo motorista. Ah, você já sabe, já andou com ele. A culpa não foi dele. O outro carro furou o sinal, e se você ver o croqui do boletim de ocorrência, a colisão foi justo na lateral do táxi do Osvaldo. Qualquer perito conclui que foi o outro que atravessou a pista no vermelho. Claro que vamos entrar no juizado pra processar o motorista, mas nenhum dos carros tinha seguro".
O dia seguinte foi pontuado com a ansiedade de ele poder ser chamado a qualquer momento para correr até a maternidade no horário do expediente. Não houve reclamações de pivetes e, com a agenda mais folgada, foi até o posto de um banco popular pedir informações sobre o dito empréstimo. Fizeram-lhe os cálculos e lhe entregaram a lista dos documentos necessários. Ele os providenciou no mesmo dia, mas resolveu repassar no banco somente na manhã seguinte.

***

Os meninos tinham se encontrado na Praça Rui Barbosa por previsível acaso, como ocorria quase todos os dias. Ali era o ponto terminal dos ônibus que vinham dos bairros e dos outros terminais que conectavam as cidades-dormitório. Ali eles desciam e ficavam zanzando até alguém decidir fazer alguma coisa. Pararam diante de uma confeitaria de sonhos e pediam moedas para os clientes que entravam e saíam. Mas a tarde estava quente, e o movimento fraco, de maneira que mal conseguiram ganhar alguns copos com resto de refrigerante. Nem se preocupavam se a divisão estava certa. Desânimo. A tensão da proposta pairava entre os moleques. Quim a quebrou, perguntando diretamente para o garoto mais velho:
"Maikon, não dá pra gente ir no calçadão hoje?"
Ele sabia que seria tentado. Sabia também que não havia escolha, não tinha o que fazer. Deu de ombros e disse:
"Por que não? Bora..."
As marcas da surra do sargento ainda estavam bem visíveis. Naquele dia tinha chegado ainda de tardinha em casa. Quando a mãe o viu, nem perguntou nada, sentenciou para si mesma : "Briga de moleque", e ele pôde dormir na manhã seguinte sem que ela o atormentasse pedindo que fosse pra escola.
Os meninos se perguntaram se ficavam juntos ou se se separavam.
"Eu fico sozinho, que se os polícia invoca, só pega um".
Os demais assentiram.
"Se a gente se perde, todo mundo aparece aqui às seis".
Maikon seguiu reto a Rua Westphalen, atravessou a Praça Zacarias e o calçadão, andou mais duas quadras e dobrou à esquerda rumo à Rua Suíça, passou pertinho do posto da Polícia Militar, a umas duas esquinas, só que do lado contrário. O menino se sentia angustiado, tremia de fissura, tinha perguntado se alguém tinha arranjado cola, mas todos estavam secos. Era preciso arranjar dinheiro. Ele também sentia fome.
Na Rua Suíça ficavam as lojas de instrumentos musicais. Mas também postos de agências bancárias, uma casa lotérica e uma padaria. Furtivamente se instalou sobre uma soleira quase na esquina, cuidando do movimento. Percebeu que um dos estabelecimentos parecia vazio. Uma senhora carregando uma bolsa estufada de coisas passou por ele e entrou pela porta. Era menor que ele. Se aproximou e notou que ela tinha deixado a porta de vidro aberta atrás de si. Do ângulo que podia ver, só havia mais uma moça vestida de uniforme laranja atrás de uma mesinha com telefone, as duas cadeiras de couro sintético azul à sua frente estavam desocupadas. Seria fácil, era puxar a bolsa e tchau, sair correndo.
Quando roçou a alça da bolsa, e a senhora lhe voltou o rosto assustada, sentiu sua nuca ser agarrada por uma mão assustadoramente familiar.

***

Por infeliz coincidência, a senhora da bolsa tinha entrado num posto de empréstimos bancários. Na frente da mesa em que se instalava a funcionária havia duas cadeiras gêmeas, depois um corredor vazio e, junto à parede oposta, uma fileira de bancos de espera, que o garoto não pôde enxergar pois tinha olhado para dentro do estabelecimento desde uma perspectiva colateral. Num dos bancos recostados na lateral oposta estava instalado o Sargento Schaffer, esperando o fax do Setor Administrativo da corporação confirmando a inscrição do crédito.
Carregou o menino até o posto. Garcez não estava lá, melhor assim. O garoto entrou resignado. Os dois antecipavam o que ia acontecer.
"Te disse que tinha só uma palavra..."
O sargento não se perturbou com a curiosidade dos passantes. Se alguém tivesse algo pra perguntar, que batesse na porta.
"Fecha esse bico e ao menos apanha quenem homem. Quanto mais gritar, mais pesada vai ficar minha mão".
O garoto não conseguia conter seus gritos desesperados.
"Chega, chega, já deu o bastante".
"Quem diz quanto é bastante sou eu, moleque".
Aos poucos, a dor das pancadas e chutes parecia deslocar-se. Em vez de alívio, o garoto se encheu da sensação de que os golpes tinham ido longe demais. Apenas com muito esforço focava a sua atenção para não desmaiar. No desespero, recorreu a um último recurso:
"É o Garcez, é o Garcez. O cabo que troca a droga pra gente. Ele pega do que ia pro depósito. Eu juro!"
Não foi imediatamente que Schaffer se deu conta do que ouvia. Continuava a prensar a cabeça de Maikon com pontapés alternados dos dois pés.
"O Garcez...", a voz cada vez mais ralinha.
Não ouviu mais. Prosseguiu com os golpes, reforçados por um sentimento misto de perplexidade e impotência. Perguntou:
"O Garcez?..."
Mas resposta nenhuma saiu da boca do garoto. Ele também tinha parado de se contorcer. Schaffer tentou controlar seu impulso de continuar atacando aquele corpo, agora finalmente desfalecido.
"O que tá pegando, chefe?"
Garcez acabava de entrar, curioso com a quantidade de gente aglomerada na porta do posto.
Schaffer finalmente parou. Só conseguiu balbuciar:
"Ele disse que era você..."
Garcez compreendeu a gravidade da acusação. Ao ver o corpo do menino, temeu pelo pior. Curvou-se e com os dedos tentou tomar o pulso de Maikon.
"Ele tá morto, cara, ele tá morto".
"Ele disse que era você...", repetiu Schaffer, quase chorando.
"Agora não importa o que ele disse. Importa o que vão dizer. Vai ser uma vergonha. A gente vai ter que dar um jeito."
"A gente?"
"Claro que a gente. Uma mão lava a outra. Pra que pôr sua carreira a perder por conta de um manezinho? Eu não vou perder a minha não..."
Inerte, Shaffer se aprumara encostado contra a parede. Garcez pensava alto:
"O corpo daquela estudante de Direito que o professor matou foi achado no Rio Pequeno, lembra? Se é que alguém se habilite, ninguém mais vai procurar por lá. Um raio não cai duas vezes no mesmo lugar. Tenho só que passar em casa pra apanhar um par de pás ou o senhor prefere cavar com as mãos?"
Schaffer sacudiu a cabeça com o gesto com que se diz não, mas com o qual expressava talvez apenas a sua incredulidade diante da situação. Nunca testemunhara uma morte. Nunca antes tinha matado alguém.
Garcez encostou a viatura na porta do posto. Entrou com pressa e, sozinho, tendo deixado a porta do carro aberta, carregou o cadáver aprumado, sustentando-o com os pés e o braço esquerdo em torno do tronco, e o depositou no camburão. A essa altura, quase nenhum dos curiosos tinha permanecido, os que ficavam pouco estranharam a postura do cadáver. Garcez declarou em voz alta:
"Tá tonto de cheirar cola o safado. Vai pro hospital ser internado pra ver se larga o vício. Ainda bem que eu não inventei de ter filho..."
Ao dar a partida, o corpo do garoto tombou para o lado. Melhor assim, ninguém ia ver. Não ia chamar atenção. No banco do copiloto, Schaffer repetia para si mesmo:
"Que merda... Perdi o controle. Que merda. Não pensei que ia dar nisso..."
Para sorte deles, tinha estado chovendo nas últimas semanas e a terra estava mais fofa. Garcez achou uma clareira suficientemente larga entre duas araucárias e começou a perfurar a terra com a sua pá.
"Não vai dar uma mão, chefe? Quanto mais rápido for, melhor é".
A tricheira já estava aberta quando o rádio de Schaffer estrilou. Assustado, deu câmbio. Uma mensagem da central. Eduarda tinha sido encaminhada ao hospital.
Depois do pequeno susto provocado pelo rádio, antes de derrubar o corpo na vala beante, ocorreu a Garcez revistar os bolsos do moleque. Achou atrás da calça uma carteira de fecho de velcro, dessas de camelô, o fundo preto e a frente azul com uma paisagem de praia e um engrave com as letras O.P. Dentro havia apenas uma dúzia de figurinhas com fotos de jogador de futebol e uma certidão de nascimento surrada, dobrada no meio para caber na abertura onde deveriam ficar as cédulas de dinheiro abertas. Entregou-a a Schaffer, abriu o canivete do seu chaveiro e raspou as digitais das mãos do rapazote. Por fim, retomou da pá e pôs-se a cobrir o cadáver com a terra anteriormente desencavada.

***

"Se a Eduarda tá na maternidade do Pequeno Príncipe, então me deixa lá".
"Quer que entre junto?".
"Não, vai pra tua casa e se livra das pás. Dá uma limpada na viatura e deixa ela no posto. Amanhã a gente se fala... Se é que eu vou conseguir falar contigo de novo... Fim da farra Schaffer, vou vigiar você. Você não sai mais da linha. Não trabalho com bandido".
"Sem hipocrisia chefe. Quem mata não é também bandido?"
"Não tive a intenção, seu bosta!"
"Foda-se. Você perdeu o limite. Isso se aprende na academia. Diz que não teve a intenção pra mãe dele".
Garcez olhou pro lado e notou o rosto de Schaffer arroxeado e crispado num bico de furor. Tentou acalmar os ânimos:
"Escuta aqui. Essa história acaba agora. Pra mim nada aconteceu. Te ajudei a limpar a tua merda. Mas você não me deve nada, nem eu devo nada pra você, entendido?".
Schaffer não disse nada. Não havia nada pra dizer. Segurava entre as mão a certidão do pivete. Abriu ela e leu: "Maikon de Oliveira. Deus o guarde, meu filho. E me perdoe, mas eu também tenho agora um filho pra cuidar". Rasgou cuidadosamente o documento e foi espalhando os pedaços de papel no vento contra a janela aberta do veículo.
Seria Garcez quem, dois dias depois, lavraria o auto de desaparecimento. Dona Maria do Carmo de Oliveira teria se informado com uns colegas de seu filho no bairro de que teriam combinado de voltarem juntos às seis daquele dia, mas que ele não teria aparecido. Desde então, não teria voltado pra casa nem chegado a telefonar.
"Mas o que ele vinha fazer no centro, Dona Maria? Pivetar no calçadão?"
"O senhor não passe sermão. Faço o que posso e o que não posso. Tento cuidar, mas os meninos crescem. E quanto mais crescem, ficam mais meninos".
Então Garcez pediria licença para se informar com seu chefe se o auto iria virar um inquérito ali mesmo na D.P., ou se teria que ser encaminhado ao Conselho Tutelar. Falaria rapidamente no rádio com Schaffer do lado de fora da guarida para não ser ouvido pela dona. Voltaria em seguida e informaria:
"Vai ser encaminhado ao Conselho e, depois, se for o caso, vira inquérito".

***

Ao entrar no quarto do hospital, a sogra sorridente lhe estendeu um menino enrolado numa manta azul. O pequeno não o estranhou. Com os olhos arregalados, mordia os seus dedos.
Chorando, ele se dirigiu até o leito onde sua mulher o observava. Sentou-se ao lado dela, enquanto a criança ainda buscava os dedos dele com a boca. Só então sentiu o cheiro forte do suor que molhava as suas axilas.
"Então, meu filho, já pensou num nome pra ele"?, perguntou a sogra com a sua voz rouca modulada num tom doce.
Depois de alguns instantes de reflexão, disse, tão surpreendido com o fascínio daquele nome como quase esquecido dos eventos da tarde:
"Maikon. O que vocês acham? Maikon é um nome bonito".
As duas mulheres assentiram com a cabeça, repetindo de si para si Maikon, Maikon.


São Paulo, 2011, segundo história concebida em projeto em Curitiba nos anos 90. P.S. Os desvios da gramática normativa são intencionais e correspondem a uma opção estilística do autor.