PÁGINA 1

Página número um - sobre o alto da página, soando como ameaça. O escritor se repreende, vamos, é hora de começar. Também a ocasião de uma ironia travessa, demasiado óbvia embora ele por um momento possa se considerar esperto por isso: não sabendo como iniciar a obra, o escritor vinga-se de seu bloqueio criativo elegendo-o como tema.
Então não vamos falar de nada, e não quero ninguém depois reclamando que o que leu não tinha assunto nenhum. Mas qual a real importância de algo ter sentido? Palavras, gestos, ruas têm sentido, mas a maioria das coisas nesta vida não tem sentido nenhum. Então Deus deve ser tudo, jardineiro, polícia, professor, modelo fotográfico, tudo menos escritor: as coisas que faz não precisam senão existir, tenham ou não razão de ser, existir consiste em não precisar ter sentido.
Não fosse essa ressalva, havia que dar algum prazer ao escrivinhador brincar de Deus... Mas o leitor espera beleza e sentido no que lê, enquanto as obras do demiurgo raramente exibem esses atributos. E quando o fazem, temos então plena razão em falarmos em milagre.
Mas há ainda o vazio inescapável da página um e prosseguindo na metáfora da criação divina "ex nihilo", um Deus minimamente responsável tentará criar o melhor dos mundos possíveis. E o melhor romance ou livro de contos ou a grande coleta de poesia possíveis? pierres menards como nós continuarão tentando escrever essa obra arquetípica, a um tempo irreal pois irrealizável, a outro mais real que qualquer outra coisa que já tenhamos de fato lido ou escrito, uma vez que é essa quimera o que nos instiga a prosseguir preenchendo páginas um ou abrindo um livro numa delas.
Ler, por sua vez, requer um grande investimento de tempo, e por isso ler é cada vez mais difícil nestes dias. Já ouviu falar em "novelblank"? É como se diz quando você chega ao fim de um romance de 500 páginas e já não lembra do que aconteceu até a página 490. Dissem que para a pessoa média, sete dias depois da conclusão de um romance, o "novelblackout" é total. Então todo aquele tempo lendo o livrão foi jogado no lixo, e é melhor mesmo você se ater às informações sobre ele contidas na à sinopse da Wikipedia.
Com um livro breve de contos, penso que o mesmo não ocorrerá: nem o volume de informação é tão grande que ultrapasse nossa capacidade de retenção, nem o tempo dispendido será tão longo para que, sobrevindo a desmemória, se tenha perdido muita coisa. Então me veio a idéia: tenho sete contos a meio escritos, se os completo em sete dias terei um livro composto de sete peças para o leitor ler à razão de um por dia, até que, chegado ao fim, terá lido meu livrinho em uma semana, sem hercúleos esforços.
Resta saber se será possível reescrever tanta coisa em um período tão curto. O Kerouak conseguiu, mas relatando experiências que tinha vivido, trocando nomes aqui e ali, sem precisar queimar os fosfatos criando enredos críveis ou consistentes, e essa, descenessário dizer, é a parte árdua do trabalho. Penso por outro lado em certos romances, cuja complicada escritura reclamou décadas inteiras. Tudo somado, me servirei da dupla abordagem: falarei tanto de gente e lugares que conheço como de quem e onde nunca conhecerei, e ,é claro, deixarei igualmente que falem por si.

A GAIOLA




Marta estendeu o bilhete impresso ao funcionário aprumado junto à passagem, que, após passar os olhos sobre o impresso, indicou, paciente, que aquele era o portão 3 e não o portão 1, ao qual eles deviam se dirigir. O portão 1 ficava do mesmo lado daquele, só que na outra asa do prédio, seguindo sempre à esquerda veriam uma instalação idêntica àquela. Ela se desculpou, dizendo que não havia reparado no bilhete, deu meia-volta, trocando a mala de braço. Puxava o Álvaro pelo braço, visivelmente enfadada do da tarefa fatigante de arrastar os passos indecisos do marido pelo caminho, como uma babá puxando uma criança grandalhona.

Ela procurou acelerar um pouco, era bem cedo, é verdade, e provavelmente o aeroporto estava sem teto, mas era bom chegar antes da hora para evitar qualquer surpresa. Ele procurava segui-la de uma andadura uniforme, mas inevitavelmente atordoada. Cada passo parecia prenunciar a paralisia de um refreio súbito. Parecia inelutável que no próximo momento ele fosse colidir contra um dos transeuntes na multidão apressada. E a sensação da iminência de um choque tornava vacilante o seu respiro, que de outro modo seria maquinal, mas que agora era atrapalhado por uma coriza incipiente.

Quando ela exibiu os tíquetes ao segundo funcionário plantado na frente do portão 3, ambos olharam para o rosto de Álvaro. Uma gota de suor escorria de sua testa e agora se dispersava no sulco entre seus lábios. Ele prosseguia um homem bonito, ocorreu a ela inesperadamente. E um vazio amargo subiu do seu ventre para se instalar, incômodo, na garganta. Ela o amava, mas como não amar aquele homem?, como não amar um homem tão bonito? Quando o funcionário lhe devolveu os bilhetes de embarque, ela não pôde deixar de pensar que a feição dele teria parecido inexplicavelmente consternada ao agente, mas este disfarçara bem e lhes augurara em tom oficioso uma boa viagem.

Uma fila se formava contra a porta de embarque. Eles se alinharam, redistribuindo as malas entre os seus braços. A manhã escura cheirava úmida por trás da fumaça dos cigarros. Era muito cedo. O Álvaro, coitado, devia estar morrendo de sono. E ela não pôde deixar de lembrar outras manhãs também esquivas e frias, em que eles tinham aguardado naquele mesmo saguão, sentados contra os bancos junto à parede. Em tom sussurrante, ele insistiria em prosseguir apaixonado por ela, e recitaria versos improvisados, monotonamente ruins. Ela então acenderia um cigarro e se demonstraria impassível, não fosse um sorriso travesso, traidor de uma satisfação íntima. Essa sua atitude de tentar parecer indiferente era, na verdade, uma provocação: era preciso que as extravagâncias não fossem tão usuais, era preciso que elas fossem capazes de surpreendê-la, senão ela prosseguiria fumando impassível, olhando para as unhas. E ele conhecia esse gesto, ele sabia que aquilo era uma súplica para que ele fosse mais longe ainda, para que ele fizesse qualquer coisa de escandalosamente inaudito, pois só assim então ela abrisse finalmente seu sorriso numa gargalhada generosa, puxaria o rosto dele contra o seu, e depositaria um beijo na sua boca.

Ritos de amor como esse não são inusuais nem testemunham de alguma insegurança imatura. São apenas a renovação de uma aliança. Como dizer eu te amo.

Talvez ele se lembrasse também do desafio. E talvez ela tivesse consciência de que ele tinha consciência disso. Um desassossego acompanhava esse pensamento. A maior das extravagâncias já tinha sido cometida, e tornava desnecessária e impossível qualquer outra.


* * *

Marta estava controlada. Não porque os sentimentos lhe houvessem dado uma trégua, mas por causa de sua resolução (como ela decidiu chamá-la): o pensamento de estar cumprindo uma decisão pensada e repensada até poder ser considerada irrevogável, a reconfortava, dava sentido àquilo cujo sem-sentido justificaria em outra situação o desespero, pois, tomando o seu futuro ato como coisa já feita, não se permitia as vacilações de um vira-volta nem choro outro que não fosse por saudades.

Ela não precisou indicar-lhe a fileira de poltronas: ele mesmo se dirigiu a ela silente, e se instalou junto à janela, atando por si só o cinto. Abriu a portinhola da janela, mas a escuridão ainda se desenhava do lado de fora, e tudo o que ele viu foi o reflexo sereno de seu próprio rosto. Surpreendendo-se contra si mesmo, demorou-se olhando fixamente os seus próprio olhos pardos. As coisas pareciam multiplicar-se neuroticamente. Os seus olhos eram agora quatro, depois oito, depois dezesseis, depois... Nada tinha um ancoradouro fixo, apenas o espraiamento rumo a um inatingível ponto de fuga. Assim, as palavras. Elas jamais significavam a mesma coisa. Se ele dissesse, por exemplo, mar, esse termo significaria, talvez, indistintamente, uma porção de oceano, alguma coisa de muito grande ou muito intenso, uma abreviação, uma forma jocosa de dizer “ruim”. Juntada a outro termo, digamos, mundo, então o significado resultante da combinação deveria levar em conta a lógica combinatória da possibilidade de ambos os termos. Juntando-se ainda outra palavra, o mesmo raciocínio, e assim ad infinitum. Não fosse por essa inconstância, pensava, se fosse apenas capaz de eliminar a barreira (intransponível) dos significados, ele diria a Marta qualquer coisa como: “É estúpido que duas pessoas acreditem que permanecerão inabalavelmente juntas por conta de uma coisa tão insondável como um sentimento, por mais forte que ele seja. Como se este fosse uma espécie de vínculo material que as fixasse irresistivelmente unidas. Você foi a única pessoa a quem eu amei. Você sabe disso. Talvez nosso erro foi acreditar que isso, por si só, bastasse para nos manter para sempre juntos. Como se o amor nos tornasse imune aos acontecimentos. Talvez nosso erro foi confiar demais no nosso amor. Talvez nosso erro foi amar demais”.

As aeromoças passaram oferecendo jornal. Ela aceitou uma Zero Hora, na contracapa a foto de um jogador de futebol que parecia flutuar sobre a grama. Percebeu que Álvaro observava o movimento dos outros passageiros, estudava a sua atividade excitada. No banco da frente, a moça que sentava no assento da janela pediu licença para o ocupante do assento do corredor, levantando-se incalculadamente, e batendo a cabeça contra o painel de fibra de vidro abaixo do maleiro. Sorrindo, conservando a mão no local do choque, tranqüilizava agora o seu vizinho, que tratou de levantar-se prontamente e se postar no corredor para lhe ceder passagem. Álvaro olhou para Marta, que acompanhava o episódio aflita, como qualquer outra pessoa que pudesse se imaginar no lugar da moça. Mas ele raciocinou ser absurdo que alguém acreditasse verdadeiramente que outra pessoa pudesse sentir dor ou paixão ou saudades. Tudo o que se pode saber das outras pessoas é o que fazem com seus corpos: a mão levada subitamente para o lugar do choque; o sorriso nervoso e a reiteração do pedido de licença. Entretanto, e se todos os outros mentissem? E se apenas ele fosse capaz de verdadeira dor ou verdadeira paixão ou verdadeira saudade? Se os outros, Marta inclusive, apenas se limitassem a esboçar um gesto mecânico à guisa de uma compaixão fingida?

“É por isso que eu abandonei a escultura (indicando, com um gesto amplo das mãos, o movimento dos passageiros e da tripulação na nave): sua impotência de captar o movimento vital. É como essa foto. As pernas dele parecem flutuar sobre o solo, mas ainda assim se conservam estáticas, presas à forma que as contém. A dinamoescultura - bem, não é um bom nome, você é que é a expert em dar nomes às coisas, não eu - deve dar expressão à pluralidade vital das formas, à ausência de qualquer fixidez de sentido. Como o cinema, em relação à fotografia estática”.

Marta bafejou, mostrando-se irritada (estaria verdadeiramente irritada?, seria ela alguém suscetível de uma afecção tal como a irritação?). Ele se esforçava obviamente em produzir um discurso inteligente, mas sabia que tudo soava, se tanto, ridículo. Decidiu calar-se. Ele mesmo se percebia ridículo: como um quixote consciente e pós-moderno, procurava justificar-se não por aquilo em que acreditava, mas por aquilo que fazia crer acreditar, e isso contaminava todo o seu gesto de uma falsidade desajeitada. Houve um tempo em que tudo isso tinha sentido para ele, mas agora a realidade, como um cachorro inesperado, saltara sobre Álvaro, e tudo o mais perdera o sentido. Ele se tornara irresistivelmente dominado pela vida, incapaz de escapar à força paralisante de seu feitiço. Nada mais valia a pena - escrever, criar, amar, nada disso tinha agora qualquer valor. Ele desejava apenas entregar-se ao fluxo do mundo, deixar-se penetrar por ele, ser devorado por ele. E, ainda que sob a forma de uma linguagem oculta ou inefável, esperava fazer com que Marta compreendesse isso.

O avião mal começara a sobrevoar Porto Alegre rumo à região serrana, quando o sol começou a colorir o firmamento com sua tinta vermelha.

“Lá embaixo – disse ele- vê, é como um lago, um lago imenso e vermelho. E a água desse lago continua vermelha mesmo quando o sol amarelece. Lá embaixo só moram pessoas insanas, que ficam loucas por causa dessa água vermelha que bebem. São loucos, Marta, todos loucos ”. E se esforçava para fazer Marta ver o lago vermelho, mas ela afirmava não ver nada.

Se ao menos ele não falasse tão alto, pensava ela exasperada, se ao menos calado... Por que não escolhia outra hora para bancar o doidinho? Mas tinha que vexá-la ali, naquele lugar fechado, do qual não havia para onde ir. Expor-se ao olhar curioso dos outros, coitada, que fardo ela deve carregar, deviam estar pensando, e a comiseração dos olhares perplexos a exasperava. Eles não entendiam nada, não entenderiam nunca. Mas por que o miserável tinha de fazer aquilo logo ali? Ele devia saber que a machucava. Sim, tinha certeza de que sabia. Mas isso fazia parte do jogo: porque sabia que ela o abandonaria, ele resolvera se vingar dela da maneira mais mesquinha. Ou talvez tentar uma extravagância desesperada...

Ela desatou o cinto e levantou-se.

“Aonde você vai?”

“Vou fumar”- mentiu, voltando atrás para apanhar o seu jornal, que quase esquecera.


* * *


Os pais de Álvaro os recepcionaram no saguão de desembarque com simulada alegria. A mãe observou que ela parecia mais magra, o que atribui de imediato ao seu estado de abatimento. Aproveitando o momento em que Álvaro e seu pai ajudavam o motorista a depositar a bagagem na mala do táxi, ela deu-lhe tapinhas nas mãos, dizendo-lhe, num tom condescendente:

“Foi o melhor que você poderia ter feito. Ele conosco estará melhor. Olhe para você, o seu abatimento... Você não tem mais condições de cuidar dele, e depois todos esses sentimentos confusos... Você é tão jovem e bonita, não pode ficar se prendendo a um homem doente para sempre”.

O discurso aparentemente generoso escondia uma nota de celebrado triunfo. Na verdade, eles o estavam disputando. Desde os primeiros sintomas, Álvaro tornara-se o troféu de um jogo. E os seus pais tinham finalmente vencido. Marta havia desistido antes que a batalha chegasse ao fim. A resolução – pensou - não tinha sido senão uma tentativa de dissimular, dando-lhe outro nome, o que na verdade se chamava simplesmente renúncia. Aturdida, enquanto o carro se sujeitava ao rosário de lombadas na BR 116, que conduzia ao centro da cidade, e enquanto o pai de Álvaro narrava com irritante minúcia o acidente que praticamente destruíra seu carro na véspera, Marta parecia menos convencida da legitimidade de sua decisão. Atormentava-a logo agora o fato constrangedor de não poder arrolar para si mesma qualquer justificativa racional para seu ato que não parecesse egoísta. Agora que o ato já estava praticamente consumado, ficava claro que ela o fizera por razões que qualquer um julgaria detestáveis: o medo covarde de que as crises piorassem, o medo prudente de que ela não suportasse mais e fizesse alguma coisa mesquinha, o medo irracional, talvez, de juntar-se a ele, sim, o medo de ser seduzida pela mesmo canto de sereia. E, por outro lado, ela o culpava por ter ficado assim, ruminava que se ele tivesse querido o bastante, ele poderia ter resistido. Mas não, o Álvaro tinha feito uma escolha, uma escolha consciente em algum momento, mesmo esquecido por tão efêmero, e, ao fazê-lo, tinha renunciado a ela por primeiro. E finalmente, por força de um estranho mecanismo de reciprocidade, chegara a sua vez de abandoná-lo.
Sentindo o seu corpo próximo no táxi apertado, olhando-o perscrutar a paisagem pela janela como um menino curioso, seu autodomínio dissipou-se, e soluços brotaram com violência da sua boca. A mãe de Álvaro envolveu-a agachada de costas no banco de passageiro da frente num abraço consolador. Mais por hábito social que por legítima solidariedade, Álvaro resolveu quebrar o constrangimento, anunciando, num tom alto e pretensamente alegre, ter-se lembrado de um sonho tido na véspera.

“Me lembrei de um sonho. Vocês sabem que eu raramente sonho. Era tão estranho... Eu e a Marta, nós vivíamos no mesmo hotel, só que em quartos separados. Toda vez que eu batia no quarto dela, ela tinha saído, ou o som do televisor estava tão alto que ela não podia escutar a campanhia. Quando ela me ligava, eu tinha há pouco ido até a padaria, e logo estava no corredor, afobado para abrir a porta e atender o aparelho, mas quando eu finalmente respondia, ela tinha desistido. Nós íamos sempre ao mesmo restaurante, mas uma sucessão interminável de biombos separavam as nossas mesas e nenhum de nós conseguia chegar para sentar-se junto ao outro. E nos escrevíamos com histérica freqüência, mas as cartas jamais chegavam ou eram devolvidas, ou caíam por descuido da bolsa e se perdiam para sempre. Nós vivíamos juntos mas ao mesmo tempo separados por um acaso caprichoso, como nós seguíssemos duas rotas paralelas, proibidos de dobrar, certos de que estávamos muito , muito perto um do outro, mas cientes de que jamais nos cruzaríamos”.

Marta e Álvaro tinham sempre esperado por esse encontro: apenas o tinham adiado indevidamente, convictos de que teriam o resto da vida para fazê-lo. Mas as cordas que os tinham envolvido tinham sido rebentadas pela tensão desse diferimento, e agora o encontro ansiosamente esperado tinha se tornado impossível.


* * *


Marta visitava pela primeira vez a casa dos pais de Álvaro. Por uma série de insondáveis contingências, nunca tinha podido estar lá, sequer tinham jamais estado juntos em Curitiba, mas enfim, no instante em que sua visita prometia não se repetir, parecia antever com minúcia cada peça ou móvel que via pela primeira vez. Ela enfim penetrava no jardim, aquele jardim repleto das descriçoes de infância de Álvaro, que acorriam agora à sua memória. De certa forma, aquele jardim se confundia com o próprio imaginário de seu marido, e eles se pertenciam de tal modo que o indivíduo Álvaro seria inconcebível se não houvesse existido esse jardim. Contudo, talvez porque chovesse, talvez porque o dia era escuro, talvez pela prostração de seu espírito, aquilo tudo lhe parecia ao mesmo tempo previsivelmente acolhedor e desconfortavelmente fantasmagórico. Uma floresta desconexa de estátuas se alinhava contra os flancos da casa, e era como uma multidão assustadora de pessoas brotando perplexas do solo, presas a ele, debatendo-se incansavelmente contra ele, mas congeladas nesse gesto para sempre. Pareciam como que atadas dentro de si mesmas e procurando liberar-se da casca de gesso que as continha e que eram elas mesmas.

A mãe do Álvaro serviu um cafezinho na saleta de vime, que dava para o terraço cujas janelas fechadas se levantavam contra a chuva fina e persistente. Álvaro subiu sobre o banco redondo e começou a fitar os pássaros mais de perto.

“É o Getúlio, lembra dele, filho?”

Álvaro voltou-se para uma pequena gaiola de alumínio, dentro da qual trinava um periquito azul, que revoou, sustentando-se na face contrária da gaiola.

“Acredite ou não, querida, é a ave mais antiga que temos na casa, deve ter mais de dez anos, não é, pai?”

“Tem treze”.

Marta engolia o café com vagar, escutando a chuva murmurando por trás do ruído metálico das aves saltando dentro das gaiolas. Como se chamaria um mundo às avessas? Um mundo onde tudo é o contrário do que deveria ser? Um inferno pessoal, talvez. Talvez, uma distopia. Ela tinha ousado viver como os deuses, ela tinha ousado ser feliz apesar dos dias de chuva, apesar dos cafés mornos e dos cigarros que nunca se encompridavam o suficiente para um último trago. Ela tinha se julgado imune ao sofrimento, mas agora a dor, feroz na sua arremetida, tinha forçado contra os portões de sua torre e a desterravam rumo a um outro mundo. Ela fora punida pelos deuses, expulsa de seu paraíso fabricado. Estava vivendo nesse mundo às avessas, como um pássaro dentro da gaiola.

Um agito inesperado a subtraiu desse pensamento. Pela sombra que cruzou os copos, percebeu que um dos pássaros tinha escapado. Via agora o pai de Álvaro fechar a porta, enquanto todos procuravam o periquito azul pelo teto.

“Ali, o Getúlio, como ele escapou, filho?”

“Eu não sei” – disse, sem fingido atordoamento. Sentiu-se confuso. Olhou para a gaiola. O pássaro estava lá dentro e depois passara pela portinhola que Álvaro tinha levantado. Mas ele afinal de contas entrara ou saíra da gaiola? Pareceu-lhe impossível dizer. Qual era a gaiola? A que continha a sala, ou a que envolvia o pássaro antes que ele escapasse? Estava preso a esse pensamento quando o pai, contendo o Getúlio entre as mãos, devolveu-o para o seu lugar primitivo, dentro ou fora da gaiola.


A C.S.H.T.

Porto Alegre do Casais, ano de 1998, quando o fumo ainda era permitido em voos aéreos, e o autor vivia na ponte aérea Poá-Curitiba.

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