PÁGINA 1

Página número um - sobre o alto da página, soando como ameaça. O escritor se repreende, vamos, é hora de começar. Também a ocasião de uma ironia travessa, demasiado óbvia embora ele por um momento possa se considerar esperto por isso: não sabendo como iniciar a obra, o escritor vinga-se de seu bloqueio criativo elegendo-o como tema.
Então não vamos falar de nada, e não quero ninguém depois reclamando que o que leu não tinha assunto nenhum. Mas qual a real importância de algo ter sentido? Palavras, gestos, ruas têm sentido, mas a maioria das coisas nesta vida não tem sentido nenhum. Então Deus deve ser tudo, jardineiro, polícia, professor, modelo fotográfico, tudo menos escritor: as coisas que faz não precisam senão existir, tenham ou não razão de ser, existir consiste em não precisar ter sentido.
Não fosse essa ressalva, havia que dar algum prazer ao escrivinhador brincar de Deus... Mas o leitor espera beleza e sentido no que lê, enquanto as obras do demiurgo raramente exibem esses atributos. E quando o fazem, temos então plena razão em falarmos em milagre.
Mas há ainda o vazio inescapável da página um e prosseguindo na metáfora da criação divina "ex nihilo", um Deus minimamente responsável tentará criar o melhor dos mundos possíveis. E o melhor romance ou livro de contos ou a grande coleta de poesia possíveis? pierres menards como nós continuarão tentando escrever essa obra arquetípica, a um tempo irreal pois irrealizável, a outro mais real que qualquer outra coisa que já tenhamos de fato lido ou escrito, uma vez que é essa quimera o que nos instiga a prosseguir preenchendo páginas um ou abrindo um livro numa delas.
Ler, por sua vez, requer um grande investimento de tempo, e por isso ler é cada vez mais difícil nestes dias. Já ouviu falar em "novelblank"? É como se diz quando você chega ao fim de um romance de 500 páginas e já não lembra do que aconteceu até a página 490. Dissem que para a pessoa média, sete dias depois da conclusão de um romance, o "novelblackout" é total. Então todo aquele tempo lendo o livrão foi jogado no lixo, e é melhor mesmo você se ater às informações sobre ele contidas na à sinopse da Wikipedia.
Com um livro breve de contos, penso que o mesmo não ocorrerá: nem o volume de informação é tão grande que ultrapasse nossa capacidade de retenção, nem o tempo dispendido será tão longo para que, sobrevindo a desmemória, se tenha perdido muita coisa. Então me veio a idéia: tenho sete contos a meio escritos, se os completo em sete dias terei um livro composto de sete peças para o leitor ler à razão de um por dia, até que, chegado ao fim, terá lido meu livrinho em uma semana, sem hercúleos esforços.
Resta saber se será possível reescrever tanta coisa em um período tão curto. O Kerouak conseguiu, mas relatando experiências que tinha vivido, trocando nomes aqui e ali, sem precisar queimar os fosfatos criando enredos críveis ou consistentes, e essa, descenessário dizer, é a parte árdua do trabalho. Penso por outro lado em certos romances, cuja complicada escritura reclamou décadas inteiras. Tudo somado, me servirei da dupla abordagem: falarei tanto de gente e lugares que conheço como de quem e onde nunca conhecerei, e ,é claro, deixarei igualmente que falem por si.

AS DESAVENTURAS DE UM JUDEU ERRANTE



O vídeo que tinha chegado junto com a encomenda dizia que a mesa, além de dobrar-se em diversas angulações e alturas, conseguia suportar um peso de aproximadamente cento e cinqüenta quilos! Ou seja, após haver empenhado o módico trabalho de discar um número e solicitar o envio de um boleto bancário (o qual, inclusive, ainda não tinha sido liquidado!), da próxima vez em que recebesse a visita de meu tio Benjamim, eu não teria que me preocupar com a higidez de meu recém-adquirido sofá de espuma aeroespacial, finamente acabado com ladrilhos em acrílico nas bases, para combinar com meu lustre modernoso, que imitava um globo de boate do baixo Augusta. Pois agora poderia perfeitamente depositá-lo com seu vigoroso lastro sobre a dita mesinha, assegurando apenas que o tabuleiro superior estivesse em nível horizontal, a fim de evitar que ele escorregasse e saísse rolando perigosamente em direção aos meus vasos chineses que, apesar de não serem originais, são capazes de provocar uma bela impressão a menos de cem reais o par.

Estava nesse pensamento divertido quando Karl me interrompeu, retomando a discussão da manhã da véspera, no exato ponto em que tínhamos parado, com aquela sua meticulosidade de matemático, que não avança para a etapa seguinte de uma demonstração sem antes ter concluído a prova anterior.

- Então você insiste que não é possível ser gay e judeu ao mesmo tempo?

Eu tinha acabado de chegar da faculdade. Tudo o que eu rogava da sorte era poder ficar esticado um pouco, deixando o tempo escorrer sem ter que mobilizar mais neurônios que os já ocupados em assimilar as surpreendentes vantagens de uma mesa portátil cuja aquisição fôra acompanhada do delicioso brinde de um porta-controles-remotos, o qual, pasmem, poderia também fazer às vezes de um porta-revistas.

- Não, não foi exatamente esse o meu ponto. Eu apenas observei que o primeiro mandamento de Deus a Adão e Eva foi frutificai e multiplicai.

- Há casais heterossexuais que não podem ter filhos e mesmo assim têm cumprido a obrigação adotando crianças. Não há porque essa solução não possa ser estendida...

- ... escute aqui. Não é possível que você honestamente me imagine cercado de pirralhos, limpando cocô e tirando meleca. Além disso, eu tive uma mãe judia. Negar esse privilégio a uma criança significa benevolentemente privá-la de um aprendizado de sobrevivência que permitiu aos judeus resistirem a milênios de perseguições e pogroms e holocaustos...

A campainha do telefone. Me vi salvo por alguma alma caridosa que resolveu me agraciar com a oportuna interrupção de uma discussão que se prometia particularmente penosa, obrigando-me a arregimentar argumentos que não me convenceriam de parecer convencido diante a Karl, o qual então prontamente se convenceria da falsidade do meu convencimento e tentaria sordidamente me convencer da vergonha consistente em um ser racional se deixar convencer com convencimentos falsos. Tudo enfim complicado demais, se vocês me seguiram até aqui. Preciso me estirar um pouco. Por favor, meu reino pela minha recém-adquirida mesa-cadeira...

Lá foi um colérico Karl apanhar o aparelho. À minha frente, a minha nova amiga de resina, que há pouco amparava um notebook, revelava outra inaudita virtude, demonstrando-se um perfeito substituto na falta de um escabelo, pois agora eu esticava meus pés apoiando-os confortavelmente sobre ela. Era de fato uma perfeita solução para modestos proprietários de casas pouco espaçosas ou que por qualquer outro motivo não poderiam contar com a comodidade de escrivaninha e mais uma chaise longue. Deveria ter sido engenhosamente projetada por algum brilhante designer de Tókio, Nova York, Paris ou logradouros afins, cujos habitantes se roem de inveja do quarto de hóspedes-bonecas do último yacht da Barbie e suas amiguinhas. Sem dúvida, nas estreitosas megalópoles de um futuro logo ali, os consultórios psicoteraupêuticos abandonariam os vetustos divãs pela praticidade depliável de três mesas-cadeiras-porta-escabelo, uma para par de bundas, e a terceira para pendurar pés, bolsas e estufas para deixar quentinha a aparelhagem de loboctomia. No fim, para arrematar a exibição, a mesa por fim se desarticulava a ponto de resvalar facilmente debaixo da mesa de centro ou sob o sofá, ou ainda atrás do frigobar. Onde menor fosse o risco de extravio. Nem um cachorro seria tão obediente.

- É a sua irmã - disse Karl, empurrando o aparelho no meu ouvido como se a coisa (meu ouvido, poxa!) fosse feito de borracha.

- Ai, resmunguei contundido, da próxima vez vê se tenta com uma marreta!
- Ô Bummy, você está sentado? Ela gritava do outro lado, provocando uma estrídula reverberação no meu tímpano já magoado.

Caro leitor, preciso fazer uma digressão. Vou lhes estender uma pausa pro quarto de banho ou pro inconfessado beck, por favor voltem acabados os trabalhos. Tragam canetas para fazerem flechas, se é que se lembrem no trajeto de regresso.

Retomo. Como membros de hordas primitivas, instintivamente precisamos de um chefe, o tal macho ou fêmea alpha das pecking- orders, no caso do meu núcleo parental, a titular da cacicagem ocorria ser justamente aquela desmiolada autoritária, que assumira tal posto pela razão singular de atingir agudos mais altos que qualquer cantora teen de jabá. E, não bastasse isso, ainda derivava um sinistro prazer em gritar e vociferar intransigente à primeira oportunidade, e quanto maior seu estado de embriaguez, mais longe o loop para a órbita de frequencia sucessiva. Devo acrescentar que orgulhosamente exibia em um console na sala de estar de meus genitores um bric-à-brac de taças e medalhas e insígnias conquistadas ao longo dos anos em competições de ganha-quem-cai-por-último (the winner takes it all), tendo recentemente batido o então recordista em plena Moscou num duelo acirrado na subcategoria vodka 80 graus. Consta por fim que em tal ocasião carregou os derrotados desmaiados em coma alcóolico em seu scania alugado sem ter infringido uma só lei de trânsito mesmo detida a meio-trajeto para se submeter a um teste de bafômetro. Era, portanto, uma lenda da embriagamento artístico ou de meta ou de resistência, seus olhos cintilavam permanente avermelhados de Campari, corrigidos nas fotos com o uso do logicial photoshop (marca comercial). Por isso, raramente alguém a reconhecia nas ruas como a famosa estrela das revistas esportistas. Ela não se deixava abater, só anoréxicos são fotogênicos, nas palavras delas, pessoas normais não. Nem mesmo quando alcohoréxicos.

- Sim (contestei num tom entediado), como de hábito, estar sentado é segunda natureza para mim. Professores costumam zelar pelo seu sedentarismo, ou não ??? (??? = dália para "expressão facial sarcasticamente interrogativa") Ou é pausa do café (disse segurando o fone com um dos ombros a aventurando os olhos pelas janelas) e ninguém me avisou?

Afirmam injustamente que professores do ensino superior costumam cruzar ao ir embora colegas que acabam de chegar. Eu particularmente não reparo em quem entra ou sai porque sou presbíobe e não vou admiti-lo aparecendo em público com um tardio par de óculos, só não consigo entender por quê, havendo cem vagas de garagem dispostas ao corpo docente, e este sendo constituído de quinhentas almas, consigo sempre parar meu carro na vaga que dá de frente para a mão de saída e ainda justo contra o acesso ao elevador! Mas eu nunca fui mesmo bom na matemática de permutações e arranjos e combinações. A melhor combinação que conheço é whiskey com grenadine, duas doses iguais que você chacoalha e não bate, as demais eu pela paz deixo que se arranjem ou se permutem conforme for do agrado.

Resignado, ia ouvindo as informações que ela impiedosamente descarregava, com seu deleite de cassandra tresloucada, como a guarda de trânsito que você flagra pendurando uma contravenção no para-brisa do carro, dizendo: "Com essa freqüência, professor. vai ter que fazer prova de direção que nem seus alunos, duas vezes ao ano. Se tivesse tomado um cafezinho a menos (sacudindo a cadeça em gesto lamentoso), quem sabe tinha dado tempo... Mas também, com essa pança, até os Correios (autarquia federal) chegava primeiro kkkkk".

- O tio Benjamim faleceu. Tá ouvindo? Foi ontem à noite, no jantar. Copiou? Ele se asfixiou comendo um bife, você acredita?

- Como assim? Eles fizeram um segundo jantar? Eu os havia cevado com frango de hormônio. Então eles só tinham aperitivado o frango?! (?! = dália para "isso mesmo, interrogação seguida de estupefação") E esse malfadado boi, não era casher?

- Cale-se. Poupe-me de suas piadas de mau gosto. É sério. Tentei falar com você o dia inteiro. Onde você se meteu? Não tem telefone na barraca do acarajé? Pois há também uma série de contratempos acontecendo. Tá acompanhando? Estou tão nervosa, mas não posso beber entre competições... uiuiuiui (ruído viscoso, não sei se sorvia ou derramava alguma coisa)... Até parece que sobre nós pousou uma onda de azar. Ai, putz!, eu falei a palavra, retro!, só falta soltar aquela outra, a pior de todas, você sabe: " pavão". Ih!, saiu, foi sem querer, juro...

- A ligação tá cortando - menti para acalmá-la. O que é que você estava dizendo? Que que tem o Zohar a ver com o Platão? Você andou se colocando?

- Então copia. Primeiro, os membros da Sociedade Sagrada estão detidos no aeroporto, e por isso não tem ninguém para preparar o falecido para o funeral. Eles voltavam de um congresso talmúdico em Miami quando foram detidos na alfândega, aparentemente por omissão de declaração de adegas elétricas refrigeradas, sujeitas, quem diria, só neste país mesmo, ao pagamento de imposto. Mas não para por aí: segundo, ninguém quer trazer o caixão. É que o serviço de transporte é municipal terceirizado, e o pessoal está de greve porque no almoço, servido pela concessionária, substituíram as fritas por brócolis. Só o que foi possível foi lavrar o óbito, porque o legista, que é primo e ex-paquera de tia Célia (sujeitinho sinistro, hein, pensei, devia ser mesmo fascinado por patologias congênitas e adquiridas), se abalou até aqui. E a tia Sheila, a coitada está fora de si. Diz que tudo isso está ocorrendo por causa do sumiço do kippah de estimação do tio Ben, aquela que era do vovô, você lembra? Houston, tá ouvindo? Diz que deram falta do kippah ontem à noite, e desde então se ele engasgou, o necrotério fechou, a Nove de Julho ganhou faixa exclusiva para ônibus, proibiram o lipoestabil, enfim, está tudo dando errado... O kippah era uma espécie de patuá.

- Patois?

Um patuá, do yorubá (e não patoá, este do gaulês romanche, via créole, explicou minha viajada irmã), significava uma espécie de amuleto que, a despeito de não interferir de qualquer maneira na causalidade natural dos eventos, garantia, por vias ainda ignoradas, o sucesso de uma empreitada ou senão evitava a superveniência de um acontecimento nocivo, mesmo se ele nunca viesse a acontecer. Eu não sou desses que se apegam a superstições, muito menos acredito na existência de influências sobrenaturais agindo sobre nossas vidas. Mas admito que toda vez que sonho com minha tia Célia, jamais deixo de fazer uma fèzinha na loteria de animais, apostando confiantemente na cobra. Isso porque tal associação, apesar de carecer de qualquer apoio nos fatos, invariavelmente me tem assegurado sorte no sorteio zoológico. Afora tal pormenor, sigo orgulhoso de minha racionalidade e tenho contado com essa minha vocação cientificista para coligir já há um decênio provas irrefutáveis para desmascarar o atual dublê impostor de Paul MacCartney. Quanto à idade da Terra, é óbvio que ela tem seus cinco mil e avançados anos, como testemunham as escrituras. A existência irrefutável de fósseis apenas comprova que nossos descendentes dominaram a viagem no tempo e a reconstruíram no mesmo lugar para dar guarida a um Jurassik Park como safáris para os ainda mais endinheirados. Haverá sempre estranhos prazeres, como o suflê de chuchu.

Esclarecida a minha opinião sobre patuás ou patoás ou sei lá, a notícia me gelou a espinha e me provocou estrias de galinha por todo o meu avilumado corpo, devido a razões que, para não atrapalhar o fluxo da narrativa, vou ter de explicar mais adiante.

- Terra chama? Então, Bummy, pare de grunhir e venha já para cá nos ajudar neste imbroglio. Anotou? Todos já estamos aqui velando o corpo. A tia insiste que ele seja sepultado com o kippah, se com isso concordar a Sociedade Sagrada. De qualquer modo, não vai permitir que o enterro ocorra sem a sua presença, pois não comparecerá à despedida a não ser com o kippah extraviado nas mãos, para devilvê-lo ao finado, a fim de garantir ao falecido sorte no julgamento do outro lado. Dizem que Joseph Groninga, respeitada celebridade dos chás de caridade, anda do outro lado fazendo o bedel de escola primária, só porque ralhou com a mulher no dia anterior ao seu passamento. Consta que ela lhe servira café a 70 graus, como recomendam os culinaristas, mas o marido achou o café um pouco frio. A viúva to-be enfurecida retrucou que café não é chimarrão para se beber pelando, e por fim o defunto ainda vivente bradou que café morno geralmente é sobra de corno. Uma baixaria! Por conseguinte, em protesto póstumo, a velha não deu as caras no velório, e o caridoso Jo paga até hoje pelo café que não tomou lipando latrinas de alfabetizantes e roubando cigarros dos alunos que se arriscam a fumar no banheiro.

-Que sina, é pior que ser Miss Venezuela e passar a eternidade solteirona na falta de uma costela!, completei, desconfiando que toda aquela história do bedel Groninga menos testemunhasse da legitimidade de uma tradição que de um incipiente estado de embriaguês de minha irmã.

- Nós já reviramos a casa uma setenta vezes, e nada do kippah.

Elementar. Nem se pusessem de ponta cabeça a casa inteira, aquela caverna de Ali Babá transformada num saco de gatos de tanta coisa pós-datada e imprestável que os velhos teimavam em guardar, a chacoalhassem e depois um satélite escaneasse os despojos centímetro a centímetro, nunca iriam dar com o kippah desgarrado. É possível ser gay e judeu e assassino ao mesmo tempo? Pus a mão no bolso. Senti a frieza da superfície macia da seda negra e percorri com os dedos as saliências das inscrições douradas. Era o kippah. Eu o tinha furtado na própria véspera, quando jantava, ou melhor, pré-jantava, ou mais exatamente tentava apanhar restos da voraz glutonice dos meus tios na sua sobreamontoada morada. Eles se disputavam a posse da última coxa de frango quando, para ausentar-me da cena degradante, pedi licença para apanhar outra garrafa de vinho na cozinha.

Quando entrei na peça, que estava sendo reformada, avistei o magnífico objeto ao lado de tomos do Talmud, repousados sobre uma banqueta encostada na parede, meio escondida atrás de tábuas de aglomerado embaladas em plástico que aguardavam a chegada já por duas vezes postergada dos instaladores de um armário de panelas. O tio deveria ter deixado os objetos displicentemente na cozinha depois de voltar do serviço religioso do último Shábat, e lá o esquecera naquela bagunça. Pareceu-me uma coincidência maravilhosa: o objeto esquecido pelo meu tio, que não desgrudava dela, justamente por ocasião de uma encomenda de mobília, algo inusitado na moradia de um casal que, embora próspero, zelava, por assim dizer, por praticar uma parcimônia cautelosa herdada dos seus genitores sobreviventes de tempos de guerra, e que eu por acaso o avistasse naquele exuberante palheiro!

Tal coleção de eventos extraordinários haveria de ter um sentido: era um sinal para que eu me apropriasse dela sem maiores escrúpulos. Decerto iriam pensar que algum dos obreiros tivesse sido o autor do furto, e eu jamais seria descoberto. O kippah era um tesouro, e ele me pertencia por direito. Não hesitei em colocá-lo no bolso e, de volta à sala, esforçando-me herculeamente por disfarçar a minha euforia com um sorriso amável e com uma garrafa na mão, antes de poder me retirar e estar enfim a sós com o produto do meu furto, ainda tive de presenciar os últimos movimentos da infame batalha pelos retalhos de frango remanescentes no meu próprio prato.

O kippah tinha sido obra de meu avô. Ele o mandara fazer quando já vivia no Brasil, como lembrança de sua experiência num campo de concentração. Mandara gravar em letras quadráticas douradas os treze princípios da fé de Maimônide, que nos difíceis dias do holocausto, tinham sido um forte instrumento de encorajamento espiritual e de reavivação da fé. Em muitoas ocasiões, os prisioneiros os recitavam mesmo quando se dirigiam para a morte. Eu adorava quando meu avô me contava a simbologia daquele kippah, aduzindo sua exegese dos princípios, e o instava a que me repetisse a história, a despeito do protesto dos demais circunstantes que rogavam para não serem obrigados a escutá-la pela enésima vez. Quando o avô morreu, a tia Sheila, que já se aproximava dos quarenta, e cuja presença na casa parental com o seu porte volumoso e suas bizarrices de velha solteira de há muito atormentava a todos, tinha recentemente arranjado um noivo, meu tio Ben Silver, razão por que, à guisa de dote, este sucedeu ao vovô na propriedade do kippah.

Jamais perdoei minha vó, mãe e tias por tal decisão. Se fosse dado ao avô decidir a respeito, certamente ele teria apontado a mim, seu único neto varão, como o legítimo legatário do objeto. Mas, a despeito de tardia, a justiça divina intercedera e me pusera na posse da relíquia. Às vezes os meios justificam os fins, acho que foi o Zagallo quem o disse. Não me sentia culpado pelo feito, porém, desgraçadamente, meu crime parecia ter provocado uma profusão de conseqüências desagradáveis e imprevisíveis, de modo que eu não tinha outra escolha a não ser restituir o kippah. Meu árduo treinamento junto a uma mãe judia deveria servir-me agora. Eu precisava encontrar uma maneira de fazer a restituição sem levantar suspeitas de que eu havia sido o responsável pelo desaparecimento do patuá e, de sobra, pousar de herói. Pior, não poderia contar com nenhum cúmplice que pudesse prestar auxílio, pois, se Karl tivesse conhecimento do fato, certamente não teria o menor escrúpulo de usá-lo contra mim para obter, por exemplo, minha anuência naquela sandice de história de adoção de um bando de catarrentinhos.

Quando chegamos, a horda estava reunida. Sarita, a filha adolescente do casal, parecia abatida, mas exibia uma serena dignidade. Acabava de chamar a atenção de alguém para não sei que passarinho que estava trinando na soleira, perguntando se era um filhotinho ou não, preocupada se porventura pudesse estar passando frio. Já sua mãe estava visivelmente prostrada. Soluçava pelo kippah e tremia o corpo compulsivamente. Nada havia mais nela daquela vitalidade de matrona com a qual, ontem mesmo, eu a presenciara apossar-se de uma perna de cabrito com um só golpe de sua terceira dentição.

Minha irmã pareceu aliviada com a minha presença, embora carregasse na expressão certa contrariedade, como quem dissesse finalmente! Meu querido pai e minha mãe sentados lado a lado, com as mãos dadas, discutiam se o tempo estava fresco ou levemente quente.

Na poltrona era ela quem estava instalada, a megera. Tia Célia, fitando-me com os seus olhos embaciados pela catarata, que facilmente poderiam ser confundidos com enxertos de vidro. Assim como jazia sentada, com as pernas cruzadas, a pele branca abundante em rugas e reentrâncias, tal a superfície cerâmica da lua, o sorriso velhaco de bruxa maliciosa aprofundando o pronunciado bigode chinês quase a ponto de despegá-lo da cara com uma máscara de serial killer, os cabelos renitentemente cacheados de tanto sebo que o torcia em direções caoticamente contrárias, emprestando-lhe um aspecto de macarrão instantânea na manteiga, isso apesar das sucessivas permanentes, e encimados com uma profusa onda de mecha branca, certamente sintoma de oligofrenia, dir-se-ia que parecia uma sereia decrépita cuspida pelo mar na praia, cuja carniça tivesse sido desprezada até pelo nosso indigente museu local de história natural.

Cumprimentei a todos, enquanto Karl e minha irmã se retiraram para a cozinha.

- Ora vejam só, se não é o meu sobrinho predileto, Bummy. Você engordou, não foi? Visivelmente, por sinal. Ah, deixa pra lá. Depois dos trinta e cinco ganhar um pouco de peso é uma bênção, faz a gente parecer menos velhotinho. De qualquer maneira, tem que ter cuidado. Diz que perder dois quilos depois dos trinta para os homens é mais difícil que morrer de câncer de próstata. É verdade. É estatístico.

- Tia Célia! Como folgo em revê-la sempre com a caderneta de vacinação em dia! Aprecio imensamente a sua dedicação em ainda nos beneficiar de sua companhia. Desse jeito, pouco vamos sentir sua falta caso, não escutem os anjos que falamos em português e não em língua ungida, seja um atropelamento, um ataque terrorista, seja uma pneumonia da terceira e última idade a acometa, privando-nos da sua... marcante presença!

Disse em tom entusiástico para disfarçar minha ojeriza. Alguém precisava exterminar aquela aberração em benefício do bem coletivo. Estava a ponto de saltar sobre o pescoço daquela harpia para perfurar com minha montblanc (marca comercial) chinesinha a sua carótida da mesma maneira como ela devia proceder com suas vítimas, quando um doce aroma de bergamota perturbou os meus sentidos. Karl e minha irmã traziam bandejas com bules e xícaras empilhadas.

- Earl grey, vocês querem? - perguntou minha irmã.

Estranho, pensei, não sabia que minha irmã era dada ao earl grey, só se agora tinham lançado uma versão label de doze anos.

- Tome, dona Sheila, quem sabe lhe acalme os nervos? - sugeriu Karl.

A tentativa fez a viúva imediatamente explodir num novo ataque de soluços. Mas em seguida se concentrou sobre a taça. Parecia mesmerizada pela ou pelo patuá. Desculpem meus castiços leitores, não vou me dar ao trabalho de ir ao dicionário confirmar o gênero do inauspicioso objeto portador de bom augúrio. Coisas lá têm sexo? Tirando dildos e bonecas de borracha, é claro?

Bem, tia Sheila não parava de repetir a dita e redita e rerrepetida palavra, kippah kippah kippah, como um mantra de santeria, e cada vez que o fazia era como se me infligisse uma agulhada na espinhelha caída. Minha irmã consoladoramente lhe dava da sua própria xícara, para quebrar o gelo, por assim dizer, conforme esclarecerei num alentado entreparênteses parágrafos abaixo, enquanto eu suava frio e olhava à minha volta por uma salvadora garrafa de whiskey de preferência sem a companhia de um balde de gelo. Idéia alguma me tinha ocorrido. Era urgente que eu conseguisse me desfazer do da patuá sob pena de ser vítima de uma fulminação, quem sabe sob a escaldante espécie da combustão espontânea. Chequei os bolsos e tateei um isqueiro. Os deuses emprestam quando dão. Banqueiros também o fazem, mas a juros. Tudo farinha do mesmo saco. O nervosismo me deixa, confesso, enrubecido e um pouquinho flatulento. Metano e faísca sabidamente fazem uma composição explosiva.

- E então - ignorando o transe da enviuvada e servindo-se do chá, aduziu minha mãe com seu jeitinho serelepe- alguma novidade amorosa, Karl, alguma pretendente à vista?

- Não, dona Miriam, nenhuma costela à vista. Com tanto trabalho, sobra pouco tempo para essas coisas...

Todos se entreolharam surpresos, com indisfarçado desgosto.

- Ah, mas não se deve só trabalhar. A gente tem que dividir o tempo entre o trabalho e os assuntos pessoais - disse a prima, com sua voz débil, enquanto acarinhava a florzinha da xícara de chá, que não cansava de achar tão fofinha. Não imagino de onde tinha tirado a sentença, mas avanço que era assídua leitora de spams.

- É- acrescentou meu sábio pai- afinal de contas, se contamos o tempo é porque temos o tempo contado. Minha irmã o olhou reprovadoramente, assim como se ele tivesse acabado de proferir uma sandice, mas eu não deixava de discernir uma profunda sabedoria na asserção. Meu pai, meu herói. Minha mãe, judia.

- Mas Karl, alfinetou a Tia Sheila, parecendo recomposta com as goladas de chá, é melhor você não perder mais tempo, senão vai acabar mais um solteirão. Eu fui uma durante longuíssississimo tempo até que Ben, ó meu amado Ben (soluçando) me roubasse da minha gaiolinha de ouro, onde os meus pais, que Deus se compadeça deles, pois errar é humano como o vício do bingo, me mantinham cativa para lhes render serviços domésticos, não porque precisassem, pois já tinham se aboletado montando uma agência de turismo juvenil para levar os pobres desprevenidos para conhecer os kibutzim, ai, tão poucos voltavam, por que será?, mas no único intuito para me humilhar como mulher solteirona incapaz de agarrar um trouxa como qualquer tipa naqueles dias já fazia duas ou três vezes ao ano, acumulando heranças e pensões e montepios.

Pigarreios pela sala. Obviamente a história era uma deslavada potocada, tia Célia ainda hoje achava que ovos se abrem com tire-bouchons.

- Homem bom, o único vício que tinha era não torcer pro Corinthias, mas todos temos limitações, se quisesse casar com um Einstein, já veterana e heroicamente virgem e ademais explorada por minha força de trabalho por meus próprios genitores, tinha abandonado a prisão domiciliar e montado um bordel na região da Politécnica. Quem sabe um nerd, desses que não são autistas, se comovesse e me resgatava da avenida. Mas desde meu matrimônio, meu Ben proveu tão bem à nossa família pequenina e me deu uma filhotinha tão angelical que não subiu na Torre de Pisa com medo de atiçar sua alergia a tomates no restaurante do ático comendo uma pizza margherita, que não deixei de rezar todo dia pela felicidade que tive ao lado de um afetuoso varão que também era um administrador meticuloso de recursos. Economizou cada seu centavo ganho para permitir que agora eu leve meu resto de vida enlutada viajando em cruzeiros transatlânticos do Roberto Carlos. Seguramente seria mais divertido se fôssemos juntos, mas tenho que aceitar o fato de que Ben nos abandonou para a vida verdadeira, onde haverei de garantir que ingresse como o nababo que merece ser, de posse de seu kippah da sorte e orvalhado pelas lágrimas de sua viúva, ao invés de passar o resto dos dias como, os anjos me tornem ouvidos moucos, um contador, por exemplo.

- Ouça bem, Karl, o que diz minha irmã, a vida só começa de verdade quando na metade da vida encontramos nossa verdadeira metade... - completou Tia Célia. A cobra meneava as palavras com seu poder encantatório de górgona. Continuou: não perca tempo, há tantas raparigas casadeiras excelentes procriadoras na comunidade, não faça desfeita à saúde com que foi abençoado. Eu, sempre tão enfermiça, não pude ter filhos..., embora isso tenha me dado este porte elegante, mesmo agora que lentamente me apropinquo dos quarenta. E nem um outro castigo me doeria mais, nem as dores do parto.

Achei algum sutil humor na observação. Mas era puro descuido de sua estupidez. Mesmo energúmenos às vezes primam por uma sensatez involuntária. Conheço a história de uma senhora que escapou à morte porque seu senhorio, indignado com a baixa reputação que ela trouxera à zona onde se encontrava o imóvel, tentou livrar-se desta matando-a sorrateiramente, mas a bala foi desviada ou se alojou (ignoro este pormenor judiciário) na sua vasta rede de peircings genitais. Quanto à idade de tia Celita, a conclusão óbvia só podia ser a de que ela vinha contando o tempo de trás para frente pelo menos nos dois últimos séculos. Coisa de gente desajustada, pobrezita. Conhecem vocês alguma balzaca que use o verbo "apropinquar"? Talvez as de Eça. E o que chamava forma esvelta, qualquer pessoa que não padecesse de glaucoma, catarata e mais alucinação visiva por conta da sífilis terciária, chamaria de ossatura.

Menos me tocou a mal-camuflada perfídia atrás da observação consistente (por acaso produzi um raro particípio presente em português, os desinteressados ignorem) na insinuação de que talvez eu e Karl, pretensos flatmates, estivéssemos perdendo tempo demais um com o outro, ao invés de buscarmos um casamento de verdade. Sempre tive a certeza de que a Tia Célia é a mais clara demonstração da existência de um mal não-moral no mundo e nunca hesitei em colocá-la no mesmo rol de outras catástrofes naturais, como os terremotos, as epidemias e o imposto de renda.

Quis então o meu arguto pai, tragando da sua xícara, retirar o controle do colóquio daquelas alcoviteiras:

- Olha, perdoem se eu firo a sensibilidade de vocês, mas eu estava numa banca de jornal, procurando uma revista, como dizer diante damas, porno-soft, quando me deparei com um desses livrinhos de humor étnico, enfim, não resisti à curiosidade de ler a seção dos judeus, e lá estava uma piada de funeral.

Para o deleite da minha irmã, que aproveitou a distração de todos diante do inusitado anúncio para discretamente derramar um pouco de líquido na sua taça quase vazia de chá, o qual trazia numa garrafinha mal sufocada no meio do sutiã, das quais eu já tinha visto várias similares - todas em tom condizente com o respectivo sobtraje, meu pai pôs-se a recitar aquela consagrada anedota, que por sua excelência há gerações tornara-se conhecida de quem quer que fosse, sobre o judeu que tinha acabado de perder a mãe doente, quando um conhecido perguntou, em comiseração, o que a velha tinha, e ele respondeu: "só uma casinha na praia, uma ações bluechip, um terreninho no interior ..."

A piada operou um efeito positivo. À exceção de minha geniosa irmã, que ainda não se sentia o bastante animada e que perdera a narrativa concentrada na sua manobra, todos sorriam. Mais que sorrir, a Tia Célia chacoalhava convulsivamente seus maxilares numa gargalhada estertorante, verdadeiramente horrenda. Tive receio de que a qualquer momento pudesse acertar o olho de alguém caso sua dentadura alçasse vôo, e corri em sua direção com um pires na mão. Ela fingiu não entender meu propósito e se limitou a depositar sua xícara sobre o pires, como se eu estivesse recolhendo a louça. Depois, mudou de idéia, pedindo mais da beberagem, se lhe prestar a gentileza não me fizesse cair o braço.

Cercou-nos um silêncio aterrador, só pontuado aqui e ali com o clicar da cerâmica das taças e com o quase inaudível mas insuportável cantarolar de minha prima, que entortava a cabeça de lá para cá como uma contorcionista, enquanto puxava e enrolava suas tranças e piscava os olhos na mesma freqüência com que retorcia a ponta do nariz.

Mais uma vez, meu informado pai se esforçou para arrancar-nos da atmosfera lúgubre, comentando que o Palmeiras tinha sofrido uma derrota acachapante na noite anterior, quatro a zero, gols de Zizinho, Macarrão, Zé Pacheco e...

Tia Célia pulou com seu agudo quebra-double-glazing sobre a voz dele, não permitindo que ele completasse a instigante informação:

- Ué, o Ben era um porco fanático, não era? Vai ver foi a falta do tal kippah que fez o time dele perder a final do campeonato!!!!!!! (!!!!!!! = dália para "euforia ultrassádica, como chuva de granizo caindo no rolls-royce recém-adquirido do vizinho")

Arrematou a observação com um sorriso irônico. Sim, agora tudo tinha ficado claro, claro como água de irish-moccha, digo, água de rocha. Ela internamente exultava com o desaparecimento do kippah. Deliciava-se com a circunstância de que o kippah, que não tinha sido legado a seu falecido marido, também não ficasse nas mãos de qualquer outra pessoa da família. Era isso: se durante todos aqueles anos tínhamos dedicado um ao outro uma espécie de respeito hostil, seu fundamento era precisamente porque subconscientemente nos sabíamos competidores e iguais na batalha pelo objeto, abutres à espera de que em algum momento nos fosse dada a oportunidade de nos apossarmos dele. Chega! O kippah tinha de ser restituído à viúva Silver antes que esta também se engasgasse num fêmur de terneiro e, na falta de herdeiros masculinos do tio Ben, o patuá fosse requisitado pela sórdida parenta para restabelecer a ordem de herança. E o momento tinha de ser agora!

Levantei-me. Empostei a voz e disse solenemente, após chamar a atenção de todos martelando uma colher contra o bule que já exalava um odor de conhaque (inferi então que minha irmã tivesse já antes aproveitado da oportunidade de estar na cozinha e, tendo de alguma maneira distraído a atenção de Karl, talvez fingindo que o gás tinha apagado e pedindo que fosse à àrea de serviço checar o a chama piloto, um velho truque, havia abundantemente batizado a infusão antes de trazê-la à sala de estar, apenas posteriormente complementando sua taça com uma dose mais profissional no momento em que eu a flagrara desentranhando o aríbalo de entre seus desmesurados gêmeos, ah, nada excluindo que tivesse feito o mesmo outra vez antes daquela a que eu tinha assistido, a fim de anestesiar a viúva no momento em que ela descompensara). Dizia antes desses espalancados parênteses que bati no bule com a colher e proferi em tom solene que talvez fosse chegada a hora de realizar aquela velha homenagem ao falecido, pelo qual o felicitamos pela excelência de sua pregressa vida e lhe desejamos um bom novo começo no plano imaterial, a saber, o keriah, aquele antigo ritual no qual os parentes rasgam a própria roupa no velório ou funeral de um ente querido, simbolizando, com isso, que estão também dilacerados por dentro, e que a roupa que rasgamos é, como o corpo, apenas o invólucro de nossa alma imperecível.

Como é sabido, tal cerimônia, embora dignificada, não é de uso. Mas estávamos todos já bastante bêbados de earl grey de alcatrão, e a contrarreação se limitou a umas expressões levemente boquiabertas entre os mais jovens ou então divertidas entre os idosos santarrões. Fui rápido no golpe, não dei tempo a que algum espírito pudico pudesse formular alguma objeção. Comecei rasgando a minha camisa, depois, puxando os farrapos pelas mangas, desfazendo os restos com os meus pés. Lágrimas escorriam dos meus olhos. Pousei a vista sobre o meu querido tio, seu corpanzil inanimado mas saltando entre os botões do fardão, com um pouco de rosado ainda nas maçãs. Não podia deixar de me emocionar na presença daquele homem bonachão que, em tempos de juventude, havia gasto a fortuna de seus antepassados com mulheres de reputação duvidosa e com mulheres de má reputação acima de qualquer dúvida, mas que reconstruíra a sua vida ao lado de minha tia e tinha conquistado a afeição sincera de todos da família.

À minha volta, todos começaram a rasgar lenços, pedaços de vestimentas. Ao fim, estávamos todos chorando profunda e sentidamente.

Ainda aparando uma lágrima com a extremidade de porcelana de sua unha falsa, minha mãe fitou-me docemente, notando a minha camiseta de baixo de algodão branco:

- Ai, Bummy, você fica tão bonito de branco! Daria um ótimo médico...

Depois, mudando de tom:

- Bummy, você vai acabar ficando com frio e atacado de sinusite sem a sua camisa...

Era a deixa de que eu precisava. Anunciei que iria pegar um casaco do tio Ben e já fui entrando em direção aos quartos. Sabia exatamente o que fazer. Abri o guarda-roupas do falecido. Lá estava aquele seu paletó preto surrado nos punhos e nos cotovelos, que deveria ser ou outro testemunho da parcimônia que marcara o caráter do tio na sua maturidade ou outro/a patuá conservado/a além da idade da obsolecência por suas virtudes sobrenaturais, e, ao pensar nessa possibilidade, jurei para mim mesmo restitui-lo o mais breve possível, afinal, eu já tinha tido minha quota de maldições para esta semana, e a sucessiva prometia outras, pois sucedia ser a semana das provas.

Tirei o kippah do meu terno e o inseri num dos bolsos internos da veste. Mais rápido do que um rabino colhendo o dízimo antes que o extorquido contestasse a matemática distorcida da dívida, vesti-o e já estava de volta na sala.

Com ar triunfante, coloquei-me de pé em frente à viúva, desfraldei a parte interna do casaco, pondo-o à vista de todos, e, com uma gargalhada, puxei lentamente o kippah do bolso. Ela saltou sobre ele, parecia readquirir sua afamada vitalidade, quase me derrubando sobre a mesa de centro. De repente, estávamos todos em júbilo.

- Agora podemos finalmente prosseguir com isso. Eu e o Karl estamos com um carro grande, então, sabe o que vamos fazer? Vamos ao aeroporto resgatar os membro da Sociedade Sagrada Judaica, mesmo que isso nos cause algum desembolso. Depois, vamos buscar o caixão e descer o golias três andares de escada abaixo! Não é momento de tristeza nem de desespero, mas de renascimento, não é? Porém, para que o tio Ben possa renascer da maneira que merece, vamos dar-lhe o sepultamento apropriado ao bom judeu que foi!

A vitória não poderia ser mais completa. Todos pareciam entusiasmados, até minha irmã não pôde se controlar de contente e chegou a derramar à vista de todos outro jato de espírito na taça vazia e emborcá-lo sem fazer careta, tal se se tratasse de chá de melissa, como comemoração dos feitos heróicos do seu maninho caçula.

- Eu estou impressionado- disse Karl, fechando a porta atrás de nós.

- Manda- respondi, esperando pelo pior.

- Sua farsa foi hilariante... A solução do keriah poderia ser qualificada como genial se não tivesse sido fruto menos do seu raciocínio que do seu desespero.

O que me reduzia a um palhaço improvisado, abandonado a sós sem script sobre o palco, já que Karl havia assistido a tudo sem a menor comiseração, ajuda ou crítica.

- Eu teria ajudado, se você tivesse pedido. E teria contado a verdade, em última instância, caso você não tivesse achado uma maneira de desfazer suas vilanias. Claro que, conhecendo você do jeito que eu conheço, não duvidei nem um só momento de que você fosse capaz de produzir alguma bravata.

- Mesmo por meio de um ato sagrado?

- Não, não houve nenhuma blasfêmia. O keriah realmente tocou você.

Concordei com a cabeça. Ele prosseguiu:

- Depois, isso de buscar os membros da Sociedade Sagrada e de carregar o caixão, tudo isso mostra que você está longe de ser o monstro de egoísmo que deseja que nós acreditemos que você seja. É, você vai acabar mesmo concordando em adotar uma criança, eu não preciso nem me esforçar muito, e você sabe por quê?

Nenhuma noção.

Imitando uma voz de desenho animado, ele arrematou:

- Porque você é um homem bom, Ibrahim Lukowski.

Avançando um passo, Karl agarrou o corrimão e começou a descer as escadas pulando os degraus de dois em dois como um meninote.


São Paulo, 2006, sob encomenda de J.S. que especificou uma história cômica sobre um enterro judeu.






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