PÁGINA 1

Página número um - sobre o alto da página, soando como ameaça. O escritor se repreende, vamos, é hora de começar. Também a ocasião de uma ironia travessa, demasiado óbvia embora ele por um momento possa se considerar esperto por isso: não sabendo como iniciar a obra, o escritor vinga-se de seu bloqueio criativo elegendo-o como tema.
Então não vamos falar de nada, e não quero ninguém depois reclamando que o que leu não tinha assunto nenhum. Mas qual a real importância de algo ter sentido? Palavras, gestos, ruas têm sentido, mas a maioria das coisas nesta vida não tem sentido nenhum. Então Deus deve ser tudo, jardineiro, polícia, professor, modelo fotográfico, tudo menos escritor: as coisas que faz não precisam senão existir, tenham ou não razão de ser, existir consiste em não precisar ter sentido.
Não fosse essa ressalva, havia que dar algum prazer ao escrivinhador brincar de Deus... Mas o leitor espera beleza e sentido no que lê, enquanto as obras do demiurgo raramente exibem esses atributos. E quando o fazem, temos então plena razão em falarmos em milagre.
Mas há ainda o vazio inescapável da página um e prosseguindo na metáfora da criação divina "ex nihilo", um Deus minimamente responsável tentará criar o melhor dos mundos possíveis. E o melhor romance ou livro de contos ou a grande coleta de poesia possíveis? pierres menards como nós continuarão tentando escrever essa obra arquetípica, a um tempo irreal pois irrealizável, a outro mais real que qualquer outra coisa que já tenhamos de fato lido ou escrito, uma vez que é essa quimera o que nos instiga a prosseguir preenchendo páginas um ou abrindo um livro numa delas.
Ler, por sua vez, requer um grande investimento de tempo, e por isso ler é cada vez mais difícil nestes dias. Já ouviu falar em "novelblank"? É como se diz quando você chega ao fim de um romance de 500 páginas e já não lembra do que aconteceu até a página 490. Dissem que para a pessoa média, sete dias depois da conclusão de um romance, o "novelblackout" é total. Então todo aquele tempo lendo o livrão foi jogado no lixo, e é melhor mesmo você se ater às informações sobre ele contidas na à sinopse da Wikipedia.
Com um livro breve de contos, penso que o mesmo não ocorrerá: nem o volume de informação é tão grande que ultrapasse nossa capacidade de retenção, nem o tempo dispendido será tão longo para que, sobrevindo a desmemória, se tenha perdido muita coisa. Então me veio a idéia: tenho sete contos a meio escritos, se os completo em sete dias terei um livro composto de sete peças para o leitor ler à razão de um por dia, até que, chegado ao fim, terá lido meu livrinho em uma semana, sem hercúleos esforços.
Resta saber se será possível reescrever tanta coisa em um período tão curto. O Kerouak conseguiu, mas relatando experiências que tinha vivido, trocando nomes aqui e ali, sem precisar queimar os fosfatos criando enredos críveis ou consistentes, e essa, descenessário dizer, é a parte árdua do trabalho. Penso por outro lado em certos romances, cuja complicada escritura reclamou décadas inteiras. Tudo somado, me servirei da dupla abordagem: falarei tanto de gente e lugares que conheço como de quem e onde nunca conhecerei, e ,é claro, deixarei igualmente que falem por si.

A GAIOLA




Marta estendeu o bilhete impresso ao funcionário aprumado junto à passagem, que, após passar os olhos sobre o impresso, indicou, paciente, que aquele era o portão 3 e não o portão 1, ao qual eles deviam se dirigir. O portão 1 ficava do mesmo lado daquele, só que na outra asa do prédio, seguindo sempre à esquerda veriam uma instalação idêntica àquela. Ela se desculpou, dizendo que não havia reparado no bilhete, deu meia-volta, trocando a mala de braço. Puxava o Álvaro pelo braço, visivelmente enfadada do da tarefa fatigante de arrastar os passos indecisos do marido pelo caminho, como uma babá puxando uma criança grandalhona.

Ela procurou acelerar um pouco, era bem cedo, é verdade, e provavelmente o aeroporto estava sem teto, mas era bom chegar antes da hora para evitar qualquer surpresa. Ele procurava segui-la de uma andadura uniforme, mas inevitavelmente atordoada. Cada passo parecia prenunciar a paralisia de um refreio súbito. Parecia inelutável que no próximo momento ele fosse colidir contra um dos transeuntes na multidão apressada. E a sensação da iminência de um choque tornava vacilante o seu respiro, que de outro modo seria maquinal, mas que agora era atrapalhado por uma coriza incipiente.

Quando ela exibiu os tíquetes ao segundo funcionário plantado na frente do portão 3, ambos olharam para o rosto de Álvaro. Uma gota de suor escorria de sua testa e agora se dispersava no sulco entre seus lábios. Ele prosseguia um homem bonito, ocorreu a ela inesperadamente. E um vazio amargo subiu do seu ventre para se instalar, incômodo, na garganta. Ela o amava, mas como não amar aquele homem?, como não amar um homem tão bonito? Quando o funcionário lhe devolveu os bilhetes de embarque, ela não pôde deixar de pensar que a feição dele teria parecido inexplicavelmente consternada ao agente, mas este disfarçara bem e lhes augurara em tom oficioso uma boa viagem.

Uma fila se formava contra a porta de embarque. Eles se alinharam, redistribuindo as malas entre os seus braços. A manhã escura cheirava úmida por trás da fumaça dos cigarros. Era muito cedo. O Álvaro, coitado, devia estar morrendo de sono. E ela não pôde deixar de lembrar outras manhãs também esquivas e frias, em que eles tinham aguardado naquele mesmo saguão, sentados contra os bancos junto à parede. Em tom sussurrante, ele insistiria em prosseguir apaixonado por ela, e recitaria versos improvisados, monotonamente ruins. Ela então acenderia um cigarro e se demonstraria impassível, não fosse um sorriso travesso, traidor de uma satisfação íntima. Essa sua atitude de tentar parecer indiferente era, na verdade, uma provocação: era preciso que as extravagâncias não fossem tão usuais, era preciso que elas fossem capazes de surpreendê-la, senão ela prosseguiria fumando impassível, olhando para as unhas. E ele conhecia esse gesto, ele sabia que aquilo era uma súplica para que ele fosse mais longe ainda, para que ele fizesse qualquer coisa de escandalosamente inaudito, pois só assim então ela abrisse finalmente seu sorriso numa gargalhada generosa, puxaria o rosto dele contra o seu, e depositaria um beijo na sua boca.

Ritos de amor como esse não são inusuais nem testemunham de alguma insegurança imatura. São apenas a renovação de uma aliança. Como dizer eu te amo.

Talvez ele se lembrasse também do desafio. E talvez ela tivesse consciência de que ele tinha consciência disso. Um desassossego acompanhava esse pensamento. A maior das extravagâncias já tinha sido cometida, e tornava desnecessária e impossível qualquer outra.


* * *

Marta estava controlada. Não porque os sentimentos lhe houvessem dado uma trégua, mas por causa de sua resolução (como ela decidiu chamá-la): o pensamento de estar cumprindo uma decisão pensada e repensada até poder ser considerada irrevogável, a reconfortava, dava sentido àquilo cujo sem-sentido justificaria em outra situação o desespero, pois, tomando o seu futuro ato como coisa já feita, não se permitia as vacilações de um vira-volta nem choro outro que não fosse por saudades.

Ela não precisou indicar-lhe a fileira de poltronas: ele mesmo se dirigiu a ela silente, e se instalou junto à janela, atando por si só o cinto. Abriu a portinhola da janela, mas a escuridão ainda se desenhava do lado de fora, e tudo o que ele viu foi o reflexo sereno de seu próprio rosto. Surpreendendo-se contra si mesmo, demorou-se olhando fixamente os seus próprio olhos pardos. As coisas pareciam multiplicar-se neuroticamente. Os seus olhos eram agora quatro, depois oito, depois dezesseis, depois... Nada tinha um ancoradouro fixo, apenas o espraiamento rumo a um inatingível ponto de fuga. Assim, as palavras. Elas jamais significavam a mesma coisa. Se ele dissesse, por exemplo, mar, esse termo significaria, talvez, indistintamente, uma porção de oceano, alguma coisa de muito grande ou muito intenso, uma abreviação, uma forma jocosa de dizer “ruim”. Juntada a outro termo, digamos, mundo, então o significado resultante da combinação deveria levar em conta a lógica combinatória da possibilidade de ambos os termos. Juntando-se ainda outra palavra, o mesmo raciocínio, e assim ad infinitum. Não fosse por essa inconstância, pensava, se fosse apenas capaz de eliminar a barreira (intransponível) dos significados, ele diria a Marta qualquer coisa como: “É estúpido que duas pessoas acreditem que permanecerão inabalavelmente juntas por conta de uma coisa tão insondável como um sentimento, por mais forte que ele seja. Como se este fosse uma espécie de vínculo material que as fixasse irresistivelmente unidas. Você foi a única pessoa a quem eu amei. Você sabe disso. Talvez nosso erro foi acreditar que isso, por si só, bastasse para nos manter para sempre juntos. Como se o amor nos tornasse imune aos acontecimentos. Talvez nosso erro foi confiar demais no nosso amor. Talvez nosso erro foi amar demais”.

As aeromoças passaram oferecendo jornal. Ela aceitou uma Zero Hora, na contracapa a foto de um jogador de futebol que parecia flutuar sobre a grama. Percebeu que Álvaro observava o movimento dos outros passageiros, estudava a sua atividade excitada. No banco da frente, a moça que sentava no assento da janela pediu licença para o ocupante do assento do corredor, levantando-se incalculadamente, e batendo a cabeça contra o painel de fibra de vidro abaixo do maleiro. Sorrindo, conservando a mão no local do choque, tranqüilizava agora o seu vizinho, que tratou de levantar-se prontamente e se postar no corredor para lhe ceder passagem. Álvaro olhou para Marta, que acompanhava o episódio aflita, como qualquer outra pessoa que pudesse se imaginar no lugar da moça. Mas ele raciocinou ser absurdo que alguém acreditasse verdadeiramente que outra pessoa pudesse sentir dor ou paixão ou saudades. Tudo o que se pode saber das outras pessoas é o que fazem com seus corpos: a mão levada subitamente para o lugar do choque; o sorriso nervoso e a reiteração do pedido de licença. Entretanto, e se todos os outros mentissem? E se apenas ele fosse capaz de verdadeira dor ou verdadeira paixão ou verdadeira saudade? Se os outros, Marta inclusive, apenas se limitassem a esboçar um gesto mecânico à guisa de uma compaixão fingida?

“É por isso que eu abandonei a escultura (indicando, com um gesto amplo das mãos, o movimento dos passageiros e da tripulação na nave): sua impotência de captar o movimento vital. É como essa foto. As pernas dele parecem flutuar sobre o solo, mas ainda assim se conservam estáticas, presas à forma que as contém. A dinamoescultura - bem, não é um bom nome, você é que é a expert em dar nomes às coisas, não eu - deve dar expressão à pluralidade vital das formas, à ausência de qualquer fixidez de sentido. Como o cinema, em relação à fotografia estática”.

Marta bafejou, mostrando-se irritada (estaria verdadeiramente irritada?, seria ela alguém suscetível de uma afecção tal como a irritação?). Ele se esforçava obviamente em produzir um discurso inteligente, mas sabia que tudo soava, se tanto, ridículo. Decidiu calar-se. Ele mesmo se percebia ridículo: como um quixote consciente e pós-moderno, procurava justificar-se não por aquilo em que acreditava, mas por aquilo que fazia crer acreditar, e isso contaminava todo o seu gesto de uma falsidade desajeitada. Houve um tempo em que tudo isso tinha sentido para ele, mas agora a realidade, como um cachorro inesperado, saltara sobre Álvaro, e tudo o mais perdera o sentido. Ele se tornara irresistivelmente dominado pela vida, incapaz de escapar à força paralisante de seu feitiço. Nada mais valia a pena - escrever, criar, amar, nada disso tinha agora qualquer valor. Ele desejava apenas entregar-se ao fluxo do mundo, deixar-se penetrar por ele, ser devorado por ele. E, ainda que sob a forma de uma linguagem oculta ou inefável, esperava fazer com que Marta compreendesse isso.

O avião mal começara a sobrevoar Porto Alegre rumo à região serrana, quando o sol começou a colorir o firmamento com sua tinta vermelha.

“Lá embaixo – disse ele- vê, é como um lago, um lago imenso e vermelho. E a água desse lago continua vermelha mesmo quando o sol amarelece. Lá embaixo só moram pessoas insanas, que ficam loucas por causa dessa água vermelha que bebem. São loucos, Marta, todos loucos ”. E se esforçava para fazer Marta ver o lago vermelho, mas ela afirmava não ver nada.

Se ao menos ele não falasse tão alto, pensava ela exasperada, se ao menos calado... Por que não escolhia outra hora para bancar o doidinho? Mas tinha que vexá-la ali, naquele lugar fechado, do qual não havia para onde ir. Expor-se ao olhar curioso dos outros, coitada, que fardo ela deve carregar, deviam estar pensando, e a comiseração dos olhares perplexos a exasperava. Eles não entendiam nada, não entenderiam nunca. Mas por que o miserável tinha de fazer aquilo logo ali? Ele devia saber que a machucava. Sim, tinha certeza de que sabia. Mas isso fazia parte do jogo: porque sabia que ela o abandonaria, ele resolvera se vingar dela da maneira mais mesquinha. Ou talvez tentar uma extravagância desesperada...

Ela desatou o cinto e levantou-se.

“Aonde você vai?”

“Vou fumar”- mentiu, voltando atrás para apanhar o seu jornal, que quase esquecera.


* * *


Os pais de Álvaro os recepcionaram no saguão de desembarque com simulada alegria. A mãe observou que ela parecia mais magra, o que atribui de imediato ao seu estado de abatimento. Aproveitando o momento em que Álvaro e seu pai ajudavam o motorista a depositar a bagagem na mala do táxi, ela deu-lhe tapinhas nas mãos, dizendo-lhe, num tom condescendente:

“Foi o melhor que você poderia ter feito. Ele conosco estará melhor. Olhe para você, o seu abatimento... Você não tem mais condições de cuidar dele, e depois todos esses sentimentos confusos... Você é tão jovem e bonita, não pode ficar se prendendo a um homem doente para sempre”.

O discurso aparentemente generoso escondia uma nota de celebrado triunfo. Na verdade, eles o estavam disputando. Desde os primeiros sintomas, Álvaro tornara-se o troféu de um jogo. E os seus pais tinham finalmente vencido. Marta havia desistido antes que a batalha chegasse ao fim. A resolução – pensou - não tinha sido senão uma tentativa de dissimular, dando-lhe outro nome, o que na verdade se chamava simplesmente renúncia. Aturdida, enquanto o carro se sujeitava ao rosário de lombadas na BR 116, que conduzia ao centro da cidade, e enquanto o pai de Álvaro narrava com irritante minúcia o acidente que praticamente destruíra seu carro na véspera, Marta parecia menos convencida da legitimidade de sua decisão. Atormentava-a logo agora o fato constrangedor de não poder arrolar para si mesma qualquer justificativa racional para seu ato que não parecesse egoísta. Agora que o ato já estava praticamente consumado, ficava claro que ela o fizera por razões que qualquer um julgaria detestáveis: o medo covarde de que as crises piorassem, o medo prudente de que ela não suportasse mais e fizesse alguma coisa mesquinha, o medo irracional, talvez, de juntar-se a ele, sim, o medo de ser seduzida pela mesmo canto de sereia. E, por outro lado, ela o culpava por ter ficado assim, ruminava que se ele tivesse querido o bastante, ele poderia ter resistido. Mas não, o Álvaro tinha feito uma escolha, uma escolha consciente em algum momento, mesmo esquecido por tão efêmero, e, ao fazê-lo, tinha renunciado a ela por primeiro. E finalmente, por força de um estranho mecanismo de reciprocidade, chegara a sua vez de abandoná-lo.
Sentindo o seu corpo próximo no táxi apertado, olhando-o perscrutar a paisagem pela janela como um menino curioso, seu autodomínio dissipou-se, e soluços brotaram com violência da sua boca. A mãe de Álvaro envolveu-a agachada de costas no banco de passageiro da frente num abraço consolador. Mais por hábito social que por legítima solidariedade, Álvaro resolveu quebrar o constrangimento, anunciando, num tom alto e pretensamente alegre, ter-se lembrado de um sonho tido na véspera.

“Me lembrei de um sonho. Vocês sabem que eu raramente sonho. Era tão estranho... Eu e a Marta, nós vivíamos no mesmo hotel, só que em quartos separados. Toda vez que eu batia no quarto dela, ela tinha saído, ou o som do televisor estava tão alto que ela não podia escutar a campanhia. Quando ela me ligava, eu tinha há pouco ido até a padaria, e logo estava no corredor, afobado para abrir a porta e atender o aparelho, mas quando eu finalmente respondia, ela tinha desistido. Nós íamos sempre ao mesmo restaurante, mas uma sucessão interminável de biombos separavam as nossas mesas e nenhum de nós conseguia chegar para sentar-se junto ao outro. E nos escrevíamos com histérica freqüência, mas as cartas jamais chegavam ou eram devolvidas, ou caíam por descuido da bolsa e se perdiam para sempre. Nós vivíamos juntos mas ao mesmo tempo separados por um acaso caprichoso, como nós seguíssemos duas rotas paralelas, proibidos de dobrar, certos de que estávamos muito , muito perto um do outro, mas cientes de que jamais nos cruzaríamos”.

Marta e Álvaro tinham sempre esperado por esse encontro: apenas o tinham adiado indevidamente, convictos de que teriam o resto da vida para fazê-lo. Mas as cordas que os tinham envolvido tinham sido rebentadas pela tensão desse diferimento, e agora o encontro ansiosamente esperado tinha se tornado impossível.


* * *


Marta visitava pela primeira vez a casa dos pais de Álvaro. Por uma série de insondáveis contingências, nunca tinha podido estar lá, sequer tinham jamais estado juntos em Curitiba, mas enfim, no instante em que sua visita prometia não se repetir, parecia antever com minúcia cada peça ou móvel que via pela primeira vez. Ela enfim penetrava no jardim, aquele jardim repleto das descriçoes de infância de Álvaro, que acorriam agora à sua memória. De certa forma, aquele jardim se confundia com o próprio imaginário de seu marido, e eles se pertenciam de tal modo que o indivíduo Álvaro seria inconcebível se não houvesse existido esse jardim. Contudo, talvez porque chovesse, talvez porque o dia era escuro, talvez pela prostração de seu espírito, aquilo tudo lhe parecia ao mesmo tempo previsivelmente acolhedor e desconfortavelmente fantasmagórico. Uma floresta desconexa de estátuas se alinhava contra os flancos da casa, e era como uma multidão assustadora de pessoas brotando perplexas do solo, presas a ele, debatendo-se incansavelmente contra ele, mas congeladas nesse gesto para sempre. Pareciam como que atadas dentro de si mesmas e procurando liberar-se da casca de gesso que as continha e que eram elas mesmas.

A mãe do Álvaro serviu um cafezinho na saleta de vime, que dava para o terraço cujas janelas fechadas se levantavam contra a chuva fina e persistente. Álvaro subiu sobre o banco redondo e começou a fitar os pássaros mais de perto.

“É o Getúlio, lembra dele, filho?”

Álvaro voltou-se para uma pequena gaiola de alumínio, dentro da qual trinava um periquito azul, que revoou, sustentando-se na face contrária da gaiola.

“Acredite ou não, querida, é a ave mais antiga que temos na casa, deve ter mais de dez anos, não é, pai?”

“Tem treze”.

Marta engolia o café com vagar, escutando a chuva murmurando por trás do ruído metálico das aves saltando dentro das gaiolas. Como se chamaria um mundo às avessas? Um mundo onde tudo é o contrário do que deveria ser? Um inferno pessoal, talvez. Talvez, uma distopia. Ela tinha ousado viver como os deuses, ela tinha ousado ser feliz apesar dos dias de chuva, apesar dos cafés mornos e dos cigarros que nunca se encompridavam o suficiente para um último trago. Ela tinha se julgado imune ao sofrimento, mas agora a dor, feroz na sua arremetida, tinha forçado contra os portões de sua torre e a desterravam rumo a um outro mundo. Ela fora punida pelos deuses, expulsa de seu paraíso fabricado. Estava vivendo nesse mundo às avessas, como um pássaro dentro da gaiola.

Um agito inesperado a subtraiu desse pensamento. Pela sombra que cruzou os copos, percebeu que um dos pássaros tinha escapado. Via agora o pai de Álvaro fechar a porta, enquanto todos procuravam o periquito azul pelo teto.

“Ali, o Getúlio, como ele escapou, filho?”

“Eu não sei” – disse, sem fingido atordoamento. Sentiu-se confuso. Olhou para a gaiola. O pássaro estava lá dentro e depois passara pela portinhola que Álvaro tinha levantado. Mas ele afinal de contas entrara ou saíra da gaiola? Pareceu-lhe impossível dizer. Qual era a gaiola? A que continha a sala, ou a que envolvia o pássaro antes que ele escapasse? Estava preso a esse pensamento quando o pai, contendo o Getúlio entre as mãos, devolveu-o para o seu lugar primitivo, dentro ou fora da gaiola.


A C.S.H.T.

Porto Alegre do Casais, ano de 1998, quando o fumo ainda era permitido em voos aéreos, e o autor vivia na ponte aérea Poá-Curitiba.

AS DESAVENTURAS DE UM JUDEU ERRANTE



O vídeo que tinha chegado junto com a encomenda dizia que a mesa, além de dobrar-se em diversas angulações e alturas, conseguia suportar um peso de aproximadamente cento e cinqüenta quilos! Ou seja, após haver empenhado o módico trabalho de discar um número e solicitar o envio de um boleto bancário (o qual, inclusive, ainda não tinha sido liquidado!), da próxima vez em que recebesse a visita de meu tio Benjamim, eu não teria que me preocupar com a higidez de meu recém-adquirido sofá de espuma aeroespacial, finamente acabado com ladrilhos em acrílico nas bases, para combinar com meu lustre modernoso, que imitava um globo de boate do baixo Augusta. Pois agora poderia perfeitamente depositá-lo com seu vigoroso lastro sobre a dita mesinha, assegurando apenas que o tabuleiro superior estivesse em nível horizontal, a fim de evitar que ele escorregasse e saísse rolando perigosamente em direção aos meus vasos chineses que, apesar de não serem originais, são capazes de provocar uma bela impressão a menos de cem reais o par.

Estava nesse pensamento divertido quando Karl me interrompeu, retomando a discussão da manhã da véspera, no exato ponto em que tínhamos parado, com aquela sua meticulosidade de matemático, que não avança para a etapa seguinte de uma demonstração sem antes ter concluído a prova anterior.

- Então você insiste que não é possível ser gay e judeu ao mesmo tempo?

Eu tinha acabado de chegar da faculdade. Tudo o que eu rogava da sorte era poder ficar esticado um pouco, deixando o tempo escorrer sem ter que mobilizar mais neurônios que os já ocupados em assimilar as surpreendentes vantagens de uma mesa portátil cuja aquisição fôra acompanhada do delicioso brinde de um porta-controles-remotos, o qual, pasmem, poderia também fazer às vezes de um porta-revistas.

- Não, não foi exatamente esse o meu ponto. Eu apenas observei que o primeiro mandamento de Deus a Adão e Eva foi frutificai e multiplicai.

- Há casais heterossexuais que não podem ter filhos e mesmo assim têm cumprido a obrigação adotando crianças. Não há porque essa solução não possa ser estendida...

- ... escute aqui. Não é possível que você honestamente me imagine cercado de pirralhos, limpando cocô e tirando meleca. Além disso, eu tive uma mãe judia. Negar esse privilégio a uma criança significa benevolentemente privá-la de um aprendizado de sobrevivência que permitiu aos judeus resistirem a milênios de perseguições e pogroms e holocaustos...

A campainha do telefone. Me vi salvo por alguma alma caridosa que resolveu me agraciar com a oportuna interrupção de uma discussão que se prometia particularmente penosa, obrigando-me a arregimentar argumentos que não me convenceriam de parecer convencido diante a Karl, o qual então prontamente se convenceria da falsidade do meu convencimento e tentaria sordidamente me convencer da vergonha consistente em um ser racional se deixar convencer com convencimentos falsos. Tudo enfim complicado demais, se vocês me seguiram até aqui. Preciso me estirar um pouco. Por favor, meu reino pela minha recém-adquirida mesa-cadeira...

Lá foi um colérico Karl apanhar o aparelho. À minha frente, a minha nova amiga de resina, que há pouco amparava um notebook, revelava outra inaudita virtude, demonstrando-se um perfeito substituto na falta de um escabelo, pois agora eu esticava meus pés apoiando-os confortavelmente sobre ela. Era de fato uma perfeita solução para modestos proprietários de casas pouco espaçosas ou que por qualquer outro motivo não poderiam contar com a comodidade de escrivaninha e mais uma chaise longue. Deveria ter sido engenhosamente projetada por algum brilhante designer de Tókio, Nova York, Paris ou logradouros afins, cujos habitantes se roem de inveja do quarto de hóspedes-bonecas do último yacht da Barbie e suas amiguinhas. Sem dúvida, nas estreitosas megalópoles de um futuro logo ali, os consultórios psicoteraupêuticos abandonariam os vetustos divãs pela praticidade depliável de três mesas-cadeiras-porta-escabelo, uma para par de bundas, e a terceira para pendurar pés, bolsas e estufas para deixar quentinha a aparelhagem de loboctomia. No fim, para arrematar a exibição, a mesa por fim se desarticulava a ponto de resvalar facilmente debaixo da mesa de centro ou sob o sofá, ou ainda atrás do frigobar. Onde menor fosse o risco de extravio. Nem um cachorro seria tão obediente.

- É a sua irmã - disse Karl, empurrando o aparelho no meu ouvido como se a coisa (meu ouvido, poxa!) fosse feito de borracha.

- Ai, resmunguei contundido, da próxima vez vê se tenta com uma marreta!
- Ô Bummy, você está sentado? Ela gritava do outro lado, provocando uma estrídula reverberação no meu tímpano já magoado.

Caro leitor, preciso fazer uma digressão. Vou lhes estender uma pausa pro quarto de banho ou pro inconfessado beck, por favor voltem acabados os trabalhos. Tragam canetas para fazerem flechas, se é que se lembrem no trajeto de regresso.

Retomo. Como membros de hordas primitivas, instintivamente precisamos de um chefe, o tal macho ou fêmea alpha das pecking- orders, no caso do meu núcleo parental, a titular da cacicagem ocorria ser justamente aquela desmiolada autoritária, que assumira tal posto pela razão singular de atingir agudos mais altos que qualquer cantora teen de jabá. E, não bastasse isso, ainda derivava um sinistro prazer em gritar e vociferar intransigente à primeira oportunidade, e quanto maior seu estado de embriaguez, mais longe o loop para a órbita de frequencia sucessiva. Devo acrescentar que orgulhosamente exibia em um console na sala de estar de meus genitores um bric-à-brac de taças e medalhas e insígnias conquistadas ao longo dos anos em competições de ganha-quem-cai-por-último (the winner takes it all), tendo recentemente batido o então recordista em plena Moscou num duelo acirrado na subcategoria vodka 80 graus. Consta por fim que em tal ocasião carregou os derrotados desmaiados em coma alcóolico em seu scania alugado sem ter infringido uma só lei de trânsito mesmo detida a meio-trajeto para se submeter a um teste de bafômetro. Era, portanto, uma lenda da embriagamento artístico ou de meta ou de resistência, seus olhos cintilavam permanente avermelhados de Campari, corrigidos nas fotos com o uso do logicial photoshop (marca comercial). Por isso, raramente alguém a reconhecia nas ruas como a famosa estrela das revistas esportistas. Ela não se deixava abater, só anoréxicos são fotogênicos, nas palavras delas, pessoas normais não. Nem mesmo quando alcohoréxicos.

- Sim (contestei num tom entediado), como de hábito, estar sentado é segunda natureza para mim. Professores costumam zelar pelo seu sedentarismo, ou não ??? (??? = dália para "expressão facial sarcasticamente interrogativa") Ou é pausa do café (disse segurando o fone com um dos ombros a aventurando os olhos pelas janelas) e ninguém me avisou?

Afirmam injustamente que professores do ensino superior costumam cruzar ao ir embora colegas que acabam de chegar. Eu particularmente não reparo em quem entra ou sai porque sou presbíobe e não vou admiti-lo aparecendo em público com um tardio par de óculos, só não consigo entender por quê, havendo cem vagas de garagem dispostas ao corpo docente, e este sendo constituído de quinhentas almas, consigo sempre parar meu carro na vaga que dá de frente para a mão de saída e ainda justo contra o acesso ao elevador! Mas eu nunca fui mesmo bom na matemática de permutações e arranjos e combinações. A melhor combinação que conheço é whiskey com grenadine, duas doses iguais que você chacoalha e não bate, as demais eu pela paz deixo que se arranjem ou se permutem conforme for do agrado.

Resignado, ia ouvindo as informações que ela impiedosamente descarregava, com seu deleite de cassandra tresloucada, como a guarda de trânsito que você flagra pendurando uma contravenção no para-brisa do carro, dizendo: "Com essa freqüência, professor. vai ter que fazer prova de direção que nem seus alunos, duas vezes ao ano. Se tivesse tomado um cafezinho a menos (sacudindo a cadeça em gesto lamentoso), quem sabe tinha dado tempo... Mas também, com essa pança, até os Correios (autarquia federal) chegava primeiro kkkkk".

- O tio Benjamim faleceu. Tá ouvindo? Foi ontem à noite, no jantar. Copiou? Ele se asfixiou comendo um bife, você acredita?

- Como assim? Eles fizeram um segundo jantar? Eu os havia cevado com frango de hormônio. Então eles só tinham aperitivado o frango?! (?! = dália para "isso mesmo, interrogação seguida de estupefação") E esse malfadado boi, não era casher?

- Cale-se. Poupe-me de suas piadas de mau gosto. É sério. Tentei falar com você o dia inteiro. Onde você se meteu? Não tem telefone na barraca do acarajé? Pois há também uma série de contratempos acontecendo. Tá acompanhando? Estou tão nervosa, mas não posso beber entre competições... uiuiuiui (ruído viscoso, não sei se sorvia ou derramava alguma coisa)... Até parece que sobre nós pousou uma onda de azar. Ai, putz!, eu falei a palavra, retro!, só falta soltar aquela outra, a pior de todas, você sabe: " pavão". Ih!, saiu, foi sem querer, juro...

- A ligação tá cortando - menti para acalmá-la. O que é que você estava dizendo? Que que tem o Zohar a ver com o Platão? Você andou se colocando?

- Então copia. Primeiro, os membros da Sociedade Sagrada estão detidos no aeroporto, e por isso não tem ninguém para preparar o falecido para o funeral. Eles voltavam de um congresso talmúdico em Miami quando foram detidos na alfândega, aparentemente por omissão de declaração de adegas elétricas refrigeradas, sujeitas, quem diria, só neste país mesmo, ao pagamento de imposto. Mas não para por aí: segundo, ninguém quer trazer o caixão. É que o serviço de transporte é municipal terceirizado, e o pessoal está de greve porque no almoço, servido pela concessionária, substituíram as fritas por brócolis. Só o que foi possível foi lavrar o óbito, porque o legista, que é primo e ex-paquera de tia Célia (sujeitinho sinistro, hein, pensei, devia ser mesmo fascinado por patologias congênitas e adquiridas), se abalou até aqui. E a tia Sheila, a coitada está fora de si. Diz que tudo isso está ocorrendo por causa do sumiço do kippah de estimação do tio Ben, aquela que era do vovô, você lembra? Houston, tá ouvindo? Diz que deram falta do kippah ontem à noite, e desde então se ele engasgou, o necrotério fechou, a Nove de Julho ganhou faixa exclusiva para ônibus, proibiram o lipoestabil, enfim, está tudo dando errado... O kippah era uma espécie de patuá.

- Patois?

Um patuá, do yorubá (e não patoá, este do gaulês romanche, via créole, explicou minha viajada irmã), significava uma espécie de amuleto que, a despeito de não interferir de qualquer maneira na causalidade natural dos eventos, garantia, por vias ainda ignoradas, o sucesso de uma empreitada ou senão evitava a superveniência de um acontecimento nocivo, mesmo se ele nunca viesse a acontecer. Eu não sou desses que se apegam a superstições, muito menos acredito na existência de influências sobrenaturais agindo sobre nossas vidas. Mas admito que toda vez que sonho com minha tia Célia, jamais deixo de fazer uma fèzinha na loteria de animais, apostando confiantemente na cobra. Isso porque tal associação, apesar de carecer de qualquer apoio nos fatos, invariavelmente me tem assegurado sorte no sorteio zoológico. Afora tal pormenor, sigo orgulhoso de minha racionalidade e tenho contado com essa minha vocação cientificista para coligir já há um decênio provas irrefutáveis para desmascarar o atual dublê impostor de Paul MacCartney. Quanto à idade da Terra, é óbvio que ela tem seus cinco mil e avançados anos, como testemunham as escrituras. A existência irrefutável de fósseis apenas comprova que nossos descendentes dominaram a viagem no tempo e a reconstruíram no mesmo lugar para dar guarida a um Jurassik Park como safáris para os ainda mais endinheirados. Haverá sempre estranhos prazeres, como o suflê de chuchu.

Esclarecida a minha opinião sobre patuás ou patoás ou sei lá, a notícia me gelou a espinha e me provocou estrias de galinha por todo o meu avilumado corpo, devido a razões que, para não atrapalhar o fluxo da narrativa, vou ter de explicar mais adiante.

- Terra chama? Então, Bummy, pare de grunhir e venha já para cá nos ajudar neste imbroglio. Anotou? Todos já estamos aqui velando o corpo. A tia insiste que ele seja sepultado com o kippah, se com isso concordar a Sociedade Sagrada. De qualquer modo, não vai permitir que o enterro ocorra sem a sua presença, pois não comparecerá à despedida a não ser com o kippah extraviado nas mãos, para devilvê-lo ao finado, a fim de garantir ao falecido sorte no julgamento do outro lado. Dizem que Joseph Groninga, respeitada celebridade dos chás de caridade, anda do outro lado fazendo o bedel de escola primária, só porque ralhou com a mulher no dia anterior ao seu passamento. Consta que ela lhe servira café a 70 graus, como recomendam os culinaristas, mas o marido achou o café um pouco frio. A viúva to-be enfurecida retrucou que café não é chimarrão para se beber pelando, e por fim o defunto ainda vivente bradou que café morno geralmente é sobra de corno. Uma baixaria! Por conseguinte, em protesto póstumo, a velha não deu as caras no velório, e o caridoso Jo paga até hoje pelo café que não tomou lipando latrinas de alfabetizantes e roubando cigarros dos alunos que se arriscam a fumar no banheiro.

-Que sina, é pior que ser Miss Venezuela e passar a eternidade solteirona na falta de uma costela!, completei, desconfiando que toda aquela história do bedel Groninga menos testemunhasse da legitimidade de uma tradição que de um incipiente estado de embriaguês de minha irmã.

- Nós já reviramos a casa uma setenta vezes, e nada do kippah.

Elementar. Nem se pusessem de ponta cabeça a casa inteira, aquela caverna de Ali Babá transformada num saco de gatos de tanta coisa pós-datada e imprestável que os velhos teimavam em guardar, a chacoalhassem e depois um satélite escaneasse os despojos centímetro a centímetro, nunca iriam dar com o kippah desgarrado. É possível ser gay e judeu e assassino ao mesmo tempo? Pus a mão no bolso. Senti a frieza da superfície macia da seda negra e percorri com os dedos as saliências das inscrições douradas. Era o kippah. Eu o tinha furtado na própria véspera, quando jantava, ou melhor, pré-jantava, ou mais exatamente tentava apanhar restos da voraz glutonice dos meus tios na sua sobreamontoada morada. Eles se disputavam a posse da última coxa de frango quando, para ausentar-me da cena degradante, pedi licença para apanhar outra garrafa de vinho na cozinha.

Quando entrei na peça, que estava sendo reformada, avistei o magnífico objeto ao lado de tomos do Talmud, repousados sobre uma banqueta encostada na parede, meio escondida atrás de tábuas de aglomerado embaladas em plástico que aguardavam a chegada já por duas vezes postergada dos instaladores de um armário de panelas. O tio deveria ter deixado os objetos displicentemente na cozinha depois de voltar do serviço religioso do último Shábat, e lá o esquecera naquela bagunça. Pareceu-me uma coincidência maravilhosa: o objeto esquecido pelo meu tio, que não desgrudava dela, justamente por ocasião de uma encomenda de mobília, algo inusitado na moradia de um casal que, embora próspero, zelava, por assim dizer, por praticar uma parcimônia cautelosa herdada dos seus genitores sobreviventes de tempos de guerra, e que eu por acaso o avistasse naquele exuberante palheiro!

Tal coleção de eventos extraordinários haveria de ter um sentido: era um sinal para que eu me apropriasse dela sem maiores escrúpulos. Decerto iriam pensar que algum dos obreiros tivesse sido o autor do furto, e eu jamais seria descoberto. O kippah era um tesouro, e ele me pertencia por direito. Não hesitei em colocá-lo no bolso e, de volta à sala, esforçando-me herculeamente por disfarçar a minha euforia com um sorriso amável e com uma garrafa na mão, antes de poder me retirar e estar enfim a sós com o produto do meu furto, ainda tive de presenciar os últimos movimentos da infame batalha pelos retalhos de frango remanescentes no meu próprio prato.

O kippah tinha sido obra de meu avô. Ele o mandara fazer quando já vivia no Brasil, como lembrança de sua experiência num campo de concentração. Mandara gravar em letras quadráticas douradas os treze princípios da fé de Maimônide, que nos difíceis dias do holocausto, tinham sido um forte instrumento de encorajamento espiritual e de reavivação da fé. Em muitoas ocasiões, os prisioneiros os recitavam mesmo quando se dirigiam para a morte. Eu adorava quando meu avô me contava a simbologia daquele kippah, aduzindo sua exegese dos princípios, e o instava a que me repetisse a história, a despeito do protesto dos demais circunstantes que rogavam para não serem obrigados a escutá-la pela enésima vez. Quando o avô morreu, a tia Sheila, que já se aproximava dos quarenta, e cuja presença na casa parental com o seu porte volumoso e suas bizarrices de velha solteira de há muito atormentava a todos, tinha recentemente arranjado um noivo, meu tio Ben Silver, razão por que, à guisa de dote, este sucedeu ao vovô na propriedade do kippah.

Jamais perdoei minha vó, mãe e tias por tal decisão. Se fosse dado ao avô decidir a respeito, certamente ele teria apontado a mim, seu único neto varão, como o legítimo legatário do objeto. Mas, a despeito de tardia, a justiça divina intercedera e me pusera na posse da relíquia. Às vezes os meios justificam os fins, acho que foi o Zagallo quem o disse. Não me sentia culpado pelo feito, porém, desgraçadamente, meu crime parecia ter provocado uma profusão de conseqüências desagradáveis e imprevisíveis, de modo que eu não tinha outra escolha a não ser restituir o kippah. Meu árduo treinamento junto a uma mãe judia deveria servir-me agora. Eu precisava encontrar uma maneira de fazer a restituição sem levantar suspeitas de que eu havia sido o responsável pelo desaparecimento do patuá e, de sobra, pousar de herói. Pior, não poderia contar com nenhum cúmplice que pudesse prestar auxílio, pois, se Karl tivesse conhecimento do fato, certamente não teria o menor escrúpulo de usá-lo contra mim para obter, por exemplo, minha anuência naquela sandice de história de adoção de um bando de catarrentinhos.

Quando chegamos, a horda estava reunida. Sarita, a filha adolescente do casal, parecia abatida, mas exibia uma serena dignidade. Acabava de chamar a atenção de alguém para não sei que passarinho que estava trinando na soleira, perguntando se era um filhotinho ou não, preocupada se porventura pudesse estar passando frio. Já sua mãe estava visivelmente prostrada. Soluçava pelo kippah e tremia o corpo compulsivamente. Nada havia mais nela daquela vitalidade de matrona com a qual, ontem mesmo, eu a presenciara apossar-se de uma perna de cabrito com um só golpe de sua terceira dentição.

Minha irmã pareceu aliviada com a minha presença, embora carregasse na expressão certa contrariedade, como quem dissesse finalmente! Meu querido pai e minha mãe sentados lado a lado, com as mãos dadas, discutiam se o tempo estava fresco ou levemente quente.

Na poltrona era ela quem estava instalada, a megera. Tia Célia, fitando-me com os seus olhos embaciados pela catarata, que facilmente poderiam ser confundidos com enxertos de vidro. Assim como jazia sentada, com as pernas cruzadas, a pele branca abundante em rugas e reentrâncias, tal a superfície cerâmica da lua, o sorriso velhaco de bruxa maliciosa aprofundando o pronunciado bigode chinês quase a ponto de despegá-lo da cara com uma máscara de serial killer, os cabelos renitentemente cacheados de tanto sebo que o torcia em direções caoticamente contrárias, emprestando-lhe um aspecto de macarrão instantânea na manteiga, isso apesar das sucessivas permanentes, e encimados com uma profusa onda de mecha branca, certamente sintoma de oligofrenia, dir-se-ia que parecia uma sereia decrépita cuspida pelo mar na praia, cuja carniça tivesse sido desprezada até pelo nosso indigente museu local de história natural.

Cumprimentei a todos, enquanto Karl e minha irmã se retiraram para a cozinha.

- Ora vejam só, se não é o meu sobrinho predileto, Bummy. Você engordou, não foi? Visivelmente, por sinal. Ah, deixa pra lá. Depois dos trinta e cinco ganhar um pouco de peso é uma bênção, faz a gente parecer menos velhotinho. De qualquer maneira, tem que ter cuidado. Diz que perder dois quilos depois dos trinta para os homens é mais difícil que morrer de câncer de próstata. É verdade. É estatístico.

- Tia Célia! Como folgo em revê-la sempre com a caderneta de vacinação em dia! Aprecio imensamente a sua dedicação em ainda nos beneficiar de sua companhia. Desse jeito, pouco vamos sentir sua falta caso, não escutem os anjos que falamos em português e não em língua ungida, seja um atropelamento, um ataque terrorista, seja uma pneumonia da terceira e última idade a acometa, privando-nos da sua... marcante presença!

Disse em tom entusiástico para disfarçar minha ojeriza. Alguém precisava exterminar aquela aberração em benefício do bem coletivo. Estava a ponto de saltar sobre o pescoço daquela harpia para perfurar com minha montblanc (marca comercial) chinesinha a sua carótida da mesma maneira como ela devia proceder com suas vítimas, quando um doce aroma de bergamota perturbou os meus sentidos. Karl e minha irmã traziam bandejas com bules e xícaras empilhadas.

- Earl grey, vocês querem? - perguntou minha irmã.

Estranho, pensei, não sabia que minha irmã era dada ao earl grey, só se agora tinham lançado uma versão label de doze anos.

- Tome, dona Sheila, quem sabe lhe acalme os nervos? - sugeriu Karl.

A tentativa fez a viúva imediatamente explodir num novo ataque de soluços. Mas em seguida se concentrou sobre a taça. Parecia mesmerizada pela ou pelo patuá. Desculpem meus castiços leitores, não vou me dar ao trabalho de ir ao dicionário confirmar o gênero do inauspicioso objeto portador de bom augúrio. Coisas lá têm sexo? Tirando dildos e bonecas de borracha, é claro?

Bem, tia Sheila não parava de repetir a dita e redita e rerrepetida palavra, kippah kippah kippah, como um mantra de santeria, e cada vez que o fazia era como se me infligisse uma agulhada na espinhelha caída. Minha irmã consoladoramente lhe dava da sua própria xícara, para quebrar o gelo, por assim dizer, conforme esclarecerei num alentado entreparênteses parágrafos abaixo, enquanto eu suava frio e olhava à minha volta por uma salvadora garrafa de whiskey de preferência sem a companhia de um balde de gelo. Idéia alguma me tinha ocorrido. Era urgente que eu conseguisse me desfazer do da patuá sob pena de ser vítima de uma fulminação, quem sabe sob a escaldante espécie da combustão espontânea. Chequei os bolsos e tateei um isqueiro. Os deuses emprestam quando dão. Banqueiros também o fazem, mas a juros. Tudo farinha do mesmo saco. O nervosismo me deixa, confesso, enrubecido e um pouquinho flatulento. Metano e faísca sabidamente fazem uma composição explosiva.

- E então - ignorando o transe da enviuvada e servindo-se do chá, aduziu minha mãe com seu jeitinho serelepe- alguma novidade amorosa, Karl, alguma pretendente à vista?

- Não, dona Miriam, nenhuma costela à vista. Com tanto trabalho, sobra pouco tempo para essas coisas...

Todos se entreolharam surpresos, com indisfarçado desgosto.

- Ah, mas não se deve só trabalhar. A gente tem que dividir o tempo entre o trabalho e os assuntos pessoais - disse a prima, com sua voz débil, enquanto acarinhava a florzinha da xícara de chá, que não cansava de achar tão fofinha. Não imagino de onde tinha tirado a sentença, mas avanço que era assídua leitora de spams.

- É- acrescentou meu sábio pai- afinal de contas, se contamos o tempo é porque temos o tempo contado. Minha irmã o olhou reprovadoramente, assim como se ele tivesse acabado de proferir uma sandice, mas eu não deixava de discernir uma profunda sabedoria na asserção. Meu pai, meu herói. Minha mãe, judia.

- Mas Karl, alfinetou a Tia Sheila, parecendo recomposta com as goladas de chá, é melhor você não perder mais tempo, senão vai acabar mais um solteirão. Eu fui uma durante longuíssississimo tempo até que Ben, ó meu amado Ben (soluçando) me roubasse da minha gaiolinha de ouro, onde os meus pais, que Deus se compadeça deles, pois errar é humano como o vício do bingo, me mantinham cativa para lhes render serviços domésticos, não porque precisassem, pois já tinham se aboletado montando uma agência de turismo juvenil para levar os pobres desprevenidos para conhecer os kibutzim, ai, tão poucos voltavam, por que será?, mas no único intuito para me humilhar como mulher solteirona incapaz de agarrar um trouxa como qualquer tipa naqueles dias já fazia duas ou três vezes ao ano, acumulando heranças e pensões e montepios.

Pigarreios pela sala. Obviamente a história era uma deslavada potocada, tia Célia ainda hoje achava que ovos se abrem com tire-bouchons.

- Homem bom, o único vício que tinha era não torcer pro Corinthias, mas todos temos limitações, se quisesse casar com um Einstein, já veterana e heroicamente virgem e ademais explorada por minha força de trabalho por meus próprios genitores, tinha abandonado a prisão domiciliar e montado um bordel na região da Politécnica. Quem sabe um nerd, desses que não são autistas, se comovesse e me resgatava da avenida. Mas desde meu matrimônio, meu Ben proveu tão bem à nossa família pequenina e me deu uma filhotinha tão angelical que não subiu na Torre de Pisa com medo de atiçar sua alergia a tomates no restaurante do ático comendo uma pizza margherita, que não deixei de rezar todo dia pela felicidade que tive ao lado de um afetuoso varão que também era um administrador meticuloso de recursos. Economizou cada seu centavo ganho para permitir que agora eu leve meu resto de vida enlutada viajando em cruzeiros transatlânticos do Roberto Carlos. Seguramente seria mais divertido se fôssemos juntos, mas tenho que aceitar o fato de que Ben nos abandonou para a vida verdadeira, onde haverei de garantir que ingresse como o nababo que merece ser, de posse de seu kippah da sorte e orvalhado pelas lágrimas de sua viúva, ao invés de passar o resto dos dias como, os anjos me tornem ouvidos moucos, um contador, por exemplo.

- Ouça bem, Karl, o que diz minha irmã, a vida só começa de verdade quando na metade da vida encontramos nossa verdadeira metade... - completou Tia Célia. A cobra meneava as palavras com seu poder encantatório de górgona. Continuou: não perca tempo, há tantas raparigas casadeiras excelentes procriadoras na comunidade, não faça desfeita à saúde com que foi abençoado. Eu, sempre tão enfermiça, não pude ter filhos..., embora isso tenha me dado este porte elegante, mesmo agora que lentamente me apropinquo dos quarenta. E nem um outro castigo me doeria mais, nem as dores do parto.

Achei algum sutil humor na observação. Mas era puro descuido de sua estupidez. Mesmo energúmenos às vezes primam por uma sensatez involuntária. Conheço a história de uma senhora que escapou à morte porque seu senhorio, indignado com a baixa reputação que ela trouxera à zona onde se encontrava o imóvel, tentou livrar-se desta matando-a sorrateiramente, mas a bala foi desviada ou se alojou (ignoro este pormenor judiciário) na sua vasta rede de peircings genitais. Quanto à idade de tia Celita, a conclusão óbvia só podia ser a de que ela vinha contando o tempo de trás para frente pelo menos nos dois últimos séculos. Coisa de gente desajustada, pobrezita. Conhecem vocês alguma balzaca que use o verbo "apropinquar"? Talvez as de Eça. E o que chamava forma esvelta, qualquer pessoa que não padecesse de glaucoma, catarata e mais alucinação visiva por conta da sífilis terciária, chamaria de ossatura.

Menos me tocou a mal-camuflada perfídia atrás da observação consistente (por acaso produzi um raro particípio presente em português, os desinteressados ignorem) na insinuação de que talvez eu e Karl, pretensos flatmates, estivéssemos perdendo tempo demais um com o outro, ao invés de buscarmos um casamento de verdade. Sempre tive a certeza de que a Tia Célia é a mais clara demonstração da existência de um mal não-moral no mundo e nunca hesitei em colocá-la no mesmo rol de outras catástrofes naturais, como os terremotos, as epidemias e o imposto de renda.

Quis então o meu arguto pai, tragando da sua xícara, retirar o controle do colóquio daquelas alcoviteiras:

- Olha, perdoem se eu firo a sensibilidade de vocês, mas eu estava numa banca de jornal, procurando uma revista, como dizer diante damas, porno-soft, quando me deparei com um desses livrinhos de humor étnico, enfim, não resisti à curiosidade de ler a seção dos judeus, e lá estava uma piada de funeral.

Para o deleite da minha irmã, que aproveitou a distração de todos diante do inusitado anúncio para discretamente derramar um pouco de líquido na sua taça quase vazia de chá, o qual trazia numa garrafinha mal sufocada no meio do sutiã, das quais eu já tinha visto várias similares - todas em tom condizente com o respectivo sobtraje, meu pai pôs-se a recitar aquela consagrada anedota, que por sua excelência há gerações tornara-se conhecida de quem quer que fosse, sobre o judeu que tinha acabado de perder a mãe doente, quando um conhecido perguntou, em comiseração, o que a velha tinha, e ele respondeu: "só uma casinha na praia, uma ações bluechip, um terreninho no interior ..."

A piada operou um efeito positivo. À exceção de minha geniosa irmã, que ainda não se sentia o bastante animada e que perdera a narrativa concentrada na sua manobra, todos sorriam. Mais que sorrir, a Tia Célia chacoalhava convulsivamente seus maxilares numa gargalhada estertorante, verdadeiramente horrenda. Tive receio de que a qualquer momento pudesse acertar o olho de alguém caso sua dentadura alçasse vôo, e corri em sua direção com um pires na mão. Ela fingiu não entender meu propósito e se limitou a depositar sua xícara sobre o pires, como se eu estivesse recolhendo a louça. Depois, mudou de idéia, pedindo mais da beberagem, se lhe prestar a gentileza não me fizesse cair o braço.

Cercou-nos um silêncio aterrador, só pontuado aqui e ali com o clicar da cerâmica das taças e com o quase inaudível mas insuportável cantarolar de minha prima, que entortava a cabeça de lá para cá como uma contorcionista, enquanto puxava e enrolava suas tranças e piscava os olhos na mesma freqüência com que retorcia a ponta do nariz.

Mais uma vez, meu informado pai se esforçou para arrancar-nos da atmosfera lúgubre, comentando que o Palmeiras tinha sofrido uma derrota acachapante na noite anterior, quatro a zero, gols de Zizinho, Macarrão, Zé Pacheco e...

Tia Célia pulou com seu agudo quebra-double-glazing sobre a voz dele, não permitindo que ele completasse a instigante informação:

- Ué, o Ben era um porco fanático, não era? Vai ver foi a falta do tal kippah que fez o time dele perder a final do campeonato!!!!!!! (!!!!!!! = dália para "euforia ultrassádica, como chuva de granizo caindo no rolls-royce recém-adquirido do vizinho")

Arrematou a observação com um sorriso irônico. Sim, agora tudo tinha ficado claro, claro como água de irish-moccha, digo, água de rocha. Ela internamente exultava com o desaparecimento do kippah. Deliciava-se com a circunstância de que o kippah, que não tinha sido legado a seu falecido marido, também não ficasse nas mãos de qualquer outra pessoa da família. Era isso: se durante todos aqueles anos tínhamos dedicado um ao outro uma espécie de respeito hostil, seu fundamento era precisamente porque subconscientemente nos sabíamos competidores e iguais na batalha pelo objeto, abutres à espera de que em algum momento nos fosse dada a oportunidade de nos apossarmos dele. Chega! O kippah tinha de ser restituído à viúva Silver antes que esta também se engasgasse num fêmur de terneiro e, na falta de herdeiros masculinos do tio Ben, o patuá fosse requisitado pela sórdida parenta para restabelecer a ordem de herança. E o momento tinha de ser agora!

Levantei-me. Empostei a voz e disse solenemente, após chamar a atenção de todos martelando uma colher contra o bule que já exalava um odor de conhaque (inferi então que minha irmã tivesse já antes aproveitado da oportunidade de estar na cozinha e, tendo de alguma maneira distraído a atenção de Karl, talvez fingindo que o gás tinha apagado e pedindo que fosse à àrea de serviço checar o a chama piloto, um velho truque, havia abundantemente batizado a infusão antes de trazê-la à sala de estar, apenas posteriormente complementando sua taça com uma dose mais profissional no momento em que eu a flagrara desentranhando o aríbalo de entre seus desmesurados gêmeos, ah, nada excluindo que tivesse feito o mesmo outra vez antes daquela a que eu tinha assistido, a fim de anestesiar a viúva no momento em que ela descompensara). Dizia antes desses espalancados parênteses que bati no bule com a colher e proferi em tom solene que talvez fosse chegada a hora de realizar aquela velha homenagem ao falecido, pelo qual o felicitamos pela excelência de sua pregressa vida e lhe desejamos um bom novo começo no plano imaterial, a saber, o keriah, aquele antigo ritual no qual os parentes rasgam a própria roupa no velório ou funeral de um ente querido, simbolizando, com isso, que estão também dilacerados por dentro, e que a roupa que rasgamos é, como o corpo, apenas o invólucro de nossa alma imperecível.

Como é sabido, tal cerimônia, embora dignificada, não é de uso. Mas estávamos todos já bastante bêbados de earl grey de alcatrão, e a contrarreação se limitou a umas expressões levemente boquiabertas entre os mais jovens ou então divertidas entre os idosos santarrões. Fui rápido no golpe, não dei tempo a que algum espírito pudico pudesse formular alguma objeção. Comecei rasgando a minha camisa, depois, puxando os farrapos pelas mangas, desfazendo os restos com os meus pés. Lágrimas escorriam dos meus olhos. Pousei a vista sobre o meu querido tio, seu corpanzil inanimado mas saltando entre os botões do fardão, com um pouco de rosado ainda nas maçãs. Não podia deixar de me emocionar na presença daquele homem bonachão que, em tempos de juventude, havia gasto a fortuna de seus antepassados com mulheres de reputação duvidosa e com mulheres de má reputação acima de qualquer dúvida, mas que reconstruíra a sua vida ao lado de minha tia e tinha conquistado a afeição sincera de todos da família.

À minha volta, todos começaram a rasgar lenços, pedaços de vestimentas. Ao fim, estávamos todos chorando profunda e sentidamente.

Ainda aparando uma lágrima com a extremidade de porcelana de sua unha falsa, minha mãe fitou-me docemente, notando a minha camiseta de baixo de algodão branco:

- Ai, Bummy, você fica tão bonito de branco! Daria um ótimo médico...

Depois, mudando de tom:

- Bummy, você vai acabar ficando com frio e atacado de sinusite sem a sua camisa...

Era a deixa de que eu precisava. Anunciei que iria pegar um casaco do tio Ben e já fui entrando em direção aos quartos. Sabia exatamente o que fazer. Abri o guarda-roupas do falecido. Lá estava aquele seu paletó preto surrado nos punhos e nos cotovelos, que deveria ser ou outro testemunho da parcimônia que marcara o caráter do tio na sua maturidade ou outro/a patuá conservado/a além da idade da obsolecência por suas virtudes sobrenaturais, e, ao pensar nessa possibilidade, jurei para mim mesmo restitui-lo o mais breve possível, afinal, eu já tinha tido minha quota de maldições para esta semana, e a sucessiva prometia outras, pois sucedia ser a semana das provas.

Tirei o kippah do meu terno e o inseri num dos bolsos internos da veste. Mais rápido do que um rabino colhendo o dízimo antes que o extorquido contestasse a matemática distorcida da dívida, vesti-o e já estava de volta na sala.

Com ar triunfante, coloquei-me de pé em frente à viúva, desfraldei a parte interna do casaco, pondo-o à vista de todos, e, com uma gargalhada, puxei lentamente o kippah do bolso. Ela saltou sobre ele, parecia readquirir sua afamada vitalidade, quase me derrubando sobre a mesa de centro. De repente, estávamos todos em júbilo.

- Agora podemos finalmente prosseguir com isso. Eu e o Karl estamos com um carro grande, então, sabe o que vamos fazer? Vamos ao aeroporto resgatar os membro da Sociedade Sagrada Judaica, mesmo que isso nos cause algum desembolso. Depois, vamos buscar o caixão e descer o golias três andares de escada abaixo! Não é momento de tristeza nem de desespero, mas de renascimento, não é? Porém, para que o tio Ben possa renascer da maneira que merece, vamos dar-lhe o sepultamento apropriado ao bom judeu que foi!

A vitória não poderia ser mais completa. Todos pareciam entusiasmados, até minha irmã não pôde se controlar de contente e chegou a derramar à vista de todos outro jato de espírito na taça vazia e emborcá-lo sem fazer careta, tal se se tratasse de chá de melissa, como comemoração dos feitos heróicos do seu maninho caçula.

- Eu estou impressionado- disse Karl, fechando a porta atrás de nós.

- Manda- respondi, esperando pelo pior.

- Sua farsa foi hilariante... A solução do keriah poderia ser qualificada como genial se não tivesse sido fruto menos do seu raciocínio que do seu desespero.

O que me reduzia a um palhaço improvisado, abandonado a sós sem script sobre o palco, já que Karl havia assistido a tudo sem a menor comiseração, ajuda ou crítica.

- Eu teria ajudado, se você tivesse pedido. E teria contado a verdade, em última instância, caso você não tivesse achado uma maneira de desfazer suas vilanias. Claro que, conhecendo você do jeito que eu conheço, não duvidei nem um só momento de que você fosse capaz de produzir alguma bravata.

- Mesmo por meio de um ato sagrado?

- Não, não houve nenhuma blasfêmia. O keriah realmente tocou você.

Concordei com a cabeça. Ele prosseguiu:

- Depois, isso de buscar os membros da Sociedade Sagrada e de carregar o caixão, tudo isso mostra que você está longe de ser o monstro de egoísmo que deseja que nós acreditemos que você seja. É, você vai acabar mesmo concordando em adotar uma criança, eu não preciso nem me esforçar muito, e você sabe por quê?

Nenhuma noção.

Imitando uma voz de desenho animado, ele arrematou:

- Porque você é um homem bom, Ibrahim Lukowski.

Avançando um passo, Karl agarrou o corrimão e começou a descer as escadas pulando os degraus de dois em dois como um meninote.


São Paulo, 2006, sob encomenda de J.S. que especificou uma história cômica sobre um enterro judeu.






POR QUE OS CÃES NÃO REENCARNAM


Refastelados confortavelmente em nossas vidinhas, fazemos de conta que, ao seguir uma dieta de precauções, poderemos evitar que o imprevisível cause estragos nos costumeiros andores da nossa rotina. Mas o inopinado é como um vírus de computador, e, por mais que o esconjuremos com mantras em iorubá, olhos gregos comprados na feirinha de sábado ou até com o trabalho de instalar os últimos programas defensivos, não há como impedir que mais dia menos dia topemos com um daqueles ousados desbravadores de barreiras.

Quando era ainda menor, várias vezes presenciei no circo sujeitos que andavam através de cortinas de fogo. Portanto, romper esses ditos firewalls, para os habilidosos ou treinados, deve ser brincadeira de criança. Nesses casos, é melhor ter o pulso firme e aceitar racionalmente apagar o incêndio ou apelar para o plano B, o qual consiste em soberanamente fingir (e sobretudo para si mesmo) não perceber que algo de estranho está se esgueirando e prosseguir leda e desatentamente nos nossos caros cursos habituais até que nosso organismo, numa espécie de somatização às avessas, nos surpreenda com um inesperado colapso de nervos.

Logicamente se enganaram de grosso os nossos antenatos chamando o imprevisivel de imprevisível. O que já era previsível, já que alguns deles achavam que a terra era chata, embora o horizonte visto de qualquer lado é obviamente redondo, e que de outra feita disseram que tubarões eram cães aquáticos, mas eu nem ninguém que ame a sua vida teria a coragem de pendurar uma coleira com um pingente dizendo Rex num deles e mandar ele me trazer o jornal por favor sem babar.

Nossos predecessores nunca exceleram pela inteligência e é por isso que o que cunharam de imprevisível é em 90% dos casos plenamente antecipável. Acompanhe. Você empresta o seu carro para seu amigo ir a uma festança de casamento, ele enche a cara como toda pessoa boa da cabeça enche a cara numa festa de casamento, e na volta desliza na autoestrada, embora seca. Com a voz embargada de autocomiseração ele lhe telefona e diz: "Mano, tô todo enfunhunhado, dói tudo, parece que caí vestido de superman do Morro do Joá. Mas Deus é pai, não aconteceu nada sério", "E o carro, e o carro...", você tenta abreviar a ladainha e ouve como resposta um previsível "P.T., véio, deu P.T. na banheirona, aí, foi mal...". Ou então você ouve o boletim meteorológico de sexta e a moça do tempo diz "no domingo sol sem nuvens chegando a 30 graus". No sábado você confirma que "amanhã fará tempo bom ensolarado e seco, máxima de 31 graus", e enfim no domingo você já se encontra há mais de cinco horas dentro do carro: houve um deslizamento logo ali adiante no km 10, o acesso à pista contrária é impossível, pois ela é elevada, e aquela em que você está permanecerá parada até que uma esquadrilha de helicópteros retire todo o entulho da pista. Sem ter o que fazer, você liga o rádio e ouve a mesma mocinha dizendo "temporais com ventos de até 60km horários durante todo o dia, máxima de 10 graus podendo cair petaradas de granizo durante todo o período, deixe seu carro abrigado e evite sair de casa". Imprevisível ou plenamente previsível?

Os sinais do imprevisível são geralmente sutis, mas inconfundíveis. Dou-lhes o exemplo dessas estranhas revistas com que topei logo ao acordar, empilhadas ao lado do vaso na sala de banho, com as curiosas intitulações De Gatinhas, Meu Bebê e Eu e A Mamãe Contemporânea. Minha reação instintiva foi apanhá-las e, dando meia-volta, dirigir-me até a cozinha, onde Karl mergulhava uma colher na sua cumbuca cheia de iogurte mesclado com cereais, iguaria essa que eu, que não costumo refugar nada do que se possa levar à boca, há bem pouco tempo não concebia que pudesse ser adequada para o consumo de humanos ou assimilados. Já ia acrescentando algumas palavras pouco amenas à minha grimaça de revulsão, quando fui interrompido pela visão atordoante de uma massa semovente aveludada de amarelo terroso, a qual foi tomando forma nos meus aparatos de síntese perceptiva, até chegar a configurar um focinho e, depois disso, o corpo integral de um canídeo.

- Bom dia. Ah, antes que vocês me acusem de grosseria, Bummy, esse é o Cristóvam, Cristóvam esse é o Bummy, meu amigo humano, embora por precaução você melhor guarde a asserção para futura verificação...

- Cristóvam?

- Sim, com M no final. Chique, quase arcaico e decididamente neoaristocrático. Embora o último Cristóvam que eu conhecesse trabalhasse no setor de arrombamento de fechaduras emperradas. Profissão digna, como qualquer uma. E formalizada.

- ...

- A meu chefe 0correu a brilhante idéia, embora repentina, de levar a secretária gostosona para passear na praia, então, após extenuante elocubração, encontraram a solução astuta de apelar à minha solicitude, fazendo uma etapa a meia rota para deixar o Cris - posso chamá-lo assim?, dirigindo-se ao cão, e então de novo para mim - sob o meu devotado cuidado.

- E você aceitou? Quanto?

- Não era bem um pedido nem uma barganha... Na verdade, soou mais como uma ordem implícita, um isso-senão-aquilo.

-Aquilo?

- É, aquilo. Aquilo que você não sabe exatamente se é mas pode ter ser certeza de que é aquilo mesmo que você não sabia.

Fiquei sem saber.

- Eu sei o quê? Desculpa, você me perdeu...

- Não, Bummy, você não sabe nada, como é do seu feitio. Traduzo, bota atenção: ou isso ou aquilo, sem terceira opção como numa eleição de segundo turno.

- Seu estilo heideggeriano não me intimida nem prova minha estupidez. Mas pulemos esses solecismos das implicaturas proposicionais e contextos descontextualizantes e voltemos ao cão. Fato consumado, para quem podemos discar?

- Bummy, não é o fim do mundo, é apenas um cachorro.
- Ele morde?

- De fato, cães, entre outras coisas, babam e rosnam e roem e mordem, será que fui exaustivo?, mas este aqui só de brincadeira, é um golden retriever, ideal para a prática do frisbee e para a companhia de crianças pequenas.

Crianças pequenas, isso me lembrava de alguma coisa, uma reminiscência envolta numa espessa bruma de esquecimento voluntário que me voltava lentamente. Imaginei um retriever roubando o chocalho preferido de uma criança toddler e o corroendo em pedaços, e, ao contempo, o ex-proprietário entregue a um choro convulsivo e nocivo à higidez psicológica dos meus vetustos e já combalidos vizinhos. Enfim, raio, trovão, fogo na mata, a capa da ilustrada anual Relação Estatística dos Nomes de Batismo Preferidos No Século XXI deu um giro mortal no palco da minha consciência, redespertando os meus receios. Só então me ocorreu que as famigeradas publicações ainda me pesavam sobre a mão direita, aquela que eu uso para mexer colheres e escovar, quando lembro, minha quase terceira dentição.

Nesse delongado ínterim, Karl me incentivava a passar a mão na besta doméstica, o que fiz, repetindo como um tolo "mas que cachorro bobo, mas que cachorro bobo", sem que aparentemente a fera se zangasse. Sem dúvida, se tratava de uma raça particularmente tolerante para o convívio com desafiadoramente irritantes espécimes humanos. Vivendo e aprendendo, pensei, vou reter essas informações para uma ocasião futura, afinal de contas, o único bicho peludo com que eu até esse momento tivera um contato mais prolongado tinha sido a minha diletíssima tia Célia, a qual, apesar de diariamente e por toda parte ser chamada de cachorra, não pertencia até ulterior atestação à espécie canina.

Entretanto, vencida a surpresa, era hora de tirar a história das revistas a limpo. Depositei-as sobre o balcão ao lado da famigerada tigela, com ar ao mesmo tempo falsamente indignado e retoricamente interrogativo. Ele me fixou nos olhos num tom sarcástico:

- São uma leitura desafiadoramente edificadora, você deveria tentar.

- Edificadora é uma microempresa fundada por um mestre-de-obras. Esclareça uma coisa, você não está pensando em ter fedelhos, está?

- Há algo que nos proíba?

- Não, a não ser o fato biológico de um homem não poder engravidar, além do fato extrabiológico de você ser um judeu...

- Judeus não têm filhos?

- Têm, embora contribua para isso o fato de as crianças não saberem antecipadamente que terão mães judias. Mas homens solteiros, sem constituir família, não, não me parece corrente na comunidade...

- Então eu não sou um judeu como se deve, sou um judeu errado?

- Eu o parabenizo pelos cacófatos, mas não posso dizer que você seja exatamente o paradigma do bom judeu. Se não me falha a memória, no último carnaval, fui eu ou foi você quem escolheu sair fantasiado de Britney Sperms?

Opa... Karl foi assumindo tons gradativos de rubor coleriforme. Antes que atingisse o ultravioleta, privando-me do deleite de enxergar a sua descompostura, tive de ceder:

- OK, eu retiro o que disse. Mas você tem que parar de ser tão suscetível, Karl! Você tem a vulnerabilidade de um juiz do trabalho. Escorregar sem querer um você numa conversa ao invés de tratá-lo em Vossa Excelência Magnificentíssima já vira um desacato. Desculpas aceitas?

- Não é o bastante.

- OK, compensação!

Seu olhar sefaradim cintilou com a oferta. Sua boca estirou-se com um sorrisinho sádico. Apontou-me o cachorro. Como ressarcimento pelas minha boca grande, o cachorro ficaria sob a minha guarda. Com estoicismo, aceitei o fardo - tudo somado, o que significa conviver em sociedade senão usar a oportunidade de ocupar os outros com as atribuições que eram nossas?

- Bummy, papo sério agora. Anos de repressão e o trauma das zombarias escolares (não que você seja extremamente afetado, estou fazendo uma suposição) internalizaram em você uma negação à ideia da paternidade: "já que eles não admitam que eu tenha filhos, então que se dane, eu não quero mesmo...". Pense nisso.

Infelizmente, com o contratempo causado pelo meu amigo quadrúpede, tive de sair de casa às pressas, sem tempo em pensar em algo infame para retrucar à peroração bom-mocista de Karl, digna de figurar numa coluna semanal de aconselhamento de um periódico de fofoca gay (me orgulhei desse último cacófato e lembraria de usá-lo quando reabordasse o assunto com ele). No assoberbamento, igualmente não tive o ocasião de tomar um banho. Paciência, pensei, a única criatura que poderia preocupar-se em me cheirar, Cristóvam, parecia indiferente ao meus odores.

Confesso que me agradava a sua companhia: sempre bonachão e curioso, não reclamava dos meus cigarros nem desmentia os mondegreens que eu ia cometendo ao cantar as letras das músicas rádio enquanto eu nos dirigia até a faculdade. Infelizmente, tive de me separar dele ao tentarmos adentrar o edifício. Um segurança, sem usar palavra, me fez voltar a atenção com o indicador voltado para acima, à esquerda, onde, entre dois anúncios de papel sulfite colados sorrateiramente na parede anunciando serviços de acompanhantes, enfim encontrei visualmente uma placa que discreta, laconicamente, com desenhos de vultos em negro cercados de círculos vermelhos e cobertas com uma faixa em diagonal também vermelha, se interditava o ingresso de animais e de pranchas de surf. Bem feito para vocês surfistas, pensei mordazmente, com um sorriso de íntima satisfação, acaso estamos no Guarujá? Um pouco de Schadenfreude me ajudou assim a superar a inesperada frustração.

Sem outra alternativa em vista, socorri-me de um poste, ao qual atei a coleira do meu companheiro peludo. Esperei que ele desviasse a cabeça para outra direção, e, vlasch, saí à francesa, mas o bicho começou a latir, desconsolado.

De repente, eu me tornara o alvo da censura consensual dos transeuntes e me expunha ao risco de um linchamento que, dentre outras sequelas, poderia deixar ainda mais torto o meu famoso e viril narigão quatrocentão. Casamentos intragenéticos são o trunfo da prosperidade dos judeus, que assim evitam a diluição do patrimônio de um círculo doméstico, mas igualmente a causa de sua ruína biológica. Dia desses não vai fazer a menor diferença se você mulher judia engravidar e estiver em dúvida entre seu marido ou o filho do levita: o exame genético dará o mesmo resultado. Bravo!
Voltei ao cão para lhe extender as explicações devidas. Expliquei-lhe em bom português, misturado com fiapos de yidiche e inglês internético, que ia dar um pulinho sozinho lá dentro. Não demoraria muito mais que uma partida de cricket. Não, não se tratava de castigo, ele nada fizera errado, mas faria, caso ingressasse no prédio comigo. É que, por motivos que refogem a uma sóbria derivação lógica, apelando a postulados atrasados como a saúde pública e a política de acidentes do trabalho, algum reitor algum dia algum acontecimento desengatilhador baixara uma instrução que proibira a entrada de animais não-humanos nos prédios da prost-, digo, instituição. E por que eu deveria entrar ao invés de fazer companhia a ele e irmos, digamos, saltitar no contíguo parque Buenos Aires? Ora, a razão disto era, como tudo na vida, anote para lembrar mais tarde, de natureza econômica. É que eu precisava trabalhar para ganhar minhas módicas paguinhas a fim de mês, com as quais poderia, instantia gratia, comprar seu pacote de bonzo ou o que se venda nestes idos. E ocorria que eu desempenhasse tais atividades justo ali dentro, embora houvesse preferisse realizá-las por telepatia ou via uma tábua de oui-ja desde o lânguido ambiente da minha cama.

Sumo insucesso! Meus laboriosos esclarecimentos tombaram em ouvidos moucos, e notem que cientistas, esses ratos deglutidores de verbas públicas de pesquisa, ousam sustentar que cães ouvem melhor do que nós humanos ou assimilados. Ao menos o Cris, a toda aparência, não era do tipo de cachorro que ouve. Até uma criança menor que ele ficaria quietinha se lhe ameaçasse mudar do intolerável canal juvenil e seus dubladores velhos que, sem o sentido do ridículo, teimam em fazer vozes de neném. Mas meu apelo à audição compreensiva do Cris, codinome Cre-tino, resultara inútil: não consta que ele fizesse qualquer senso do que eu dizia. Assim, precisava encontrar outro método, e rápido, já que o tempo ululava junto com a odiosa sirene que anunciava o início da primeira aula. Estava atrasado e iria acabar perdendo o abono de pontualidade.

Minha orgulhosa ignorância a respeito da vida não-sexual dos cães (a sexual eu conhecia de ouvir-dizer, pois tinha muitos amigos e amigas que confessadamente a praticavam e mesmo e recomendavam com veemência, pois supostamente gerava excelente proveitos físicos e espirituais, só havia que cuidar com, tapem seus ouvidos ó anjos, as tais DSTs, entre elas a sífilis, a qual, em estágio terciário, dá tanto barato que acredito que devêssemos nascer com ela) não era (a digressão foi um bocadinho longa, relembro o leitor que estava dizendo que minha orgulhosa ignorância a respeito da vida não-sexual dos cães... não era..., conferir na testa do parágrafo) tamanha que deixasse de me ocorrer que cachorros costumam aceitar certos comandos, desde que proferidos com palavras simples e bem articuladas, como se fala com um estrangeiro, por exemplo, ovasiões nas quais, em virtude de alguma agência extralinguística insondável no final até se consegue se fazer entender e se chega mesmo a compreender os impropérios ignóbeis que nos lançam. Meu pai é proficiente em quaisquer línguas que não conhece, a saber, todas, pois aonde quer que vá se faz efetivamente comunicar por meio de um sistema inconfundível e algo embaraçoso de gritarias, gestos de mão, caretas e as onomatopéias, as jóias da coroa verbal ou quase. Tentei minha sorte com um quieto!, o qual pareceu funcionar ou ao menos reter sua concentração sobre mim e assim parar de ficar puxando a correia de lado a outro. Era um retriever, não era? Testei sua obediência atirando uma garrafa de água mineral vazia, mas ele não desviou os olhos nem tentou apanhá-la. Perfeito. Orgulhoso de minhas habilidades de adestrador, segui meu caminho até o edifício da faculdade.

A manhã prosseguiu com as costumeiras intempéries e solecismos de uma indústria em que se persegue o impossível: ensinar a alguém a aprender o que não quer aprender sem que s soubesse antes bolhufas para ter o que ensinar. Confuso, mas é por aí, leia de novo. Minha secretária insistia em que eu dominasse o uso de um programa para slides, como instrumento otimizador da minha prática docente, de modo a poupar-me o uso do quadro-negro. De quebra, isso também me auxiliaria na prevenção de minha alergia ao giz de lousa. E o mesmo doc poderia ser usado anos a fio, sem ter de ser trocado. Adeus aulas custosamente planejadas! Tentador? Nada poderia, no entanto, contra o igualmente grave tema de minha alergia a estudantes beócios. Mas uma batalha por vez.

- É só apertar aqui, e aqui, depois aqui, aqui, não aqui, desse jeito, e...

Aquis, é sabido, são deíticos. Tudo pode e é aqui. Tantos aquis começaram a dar pane no meu sistema. A sequência de comandos deveria ser intuitiva, já que ela, uma graduada desmemoriada, que nunca lembrava do número do próprio telefone, e às vezes tinha que pedir ajuda para preencher uma ficha de hotel, parecia se desempenhar idoneamente na tarefa. Para mim, no entanto, tudo soava definitivamente arbitrário, e ainda freava meu aprendizado o meu preconceito racional (explico logo em seguida) contra esses gadgets modernosos, os quais, ao proliferarem comandos além do saudoso botão único que só ligava ou desligava, tornaram-se obtusamente ranzinzas. Suma chatice! Se ela resolvesse recitar Dante ou ler o Macbeth provocaria em mim uma morte menos lenta. Aliás, como alguém no século XXI ainda pode se interessar pelas lentas ruminações em estilo retorcido de quinhentos ou mais anos atrás? Aliás, como alguém de qualquer tempo e lugar pode deixar de se aborrecer com a explicação do funcionamento de um software que vai lhe roubar a terceira pausa de latte com biscoitos de Minas na incipiente manhã?

Sinto vivo dentro de mim um prurido de indiferença com relação a todo esse dilúvio de novidades com que nos afogam os gananciosos manufatores de artigos tecnológicos, que criam demandas artificiais por coisas absolutamente desnecessárias, malgrado pareçam boas e gerem bolhas. Bolhas que vão se enchendo tanto, até que um fia estouram as bolsas de todos nós. Por isso é que declarava racional minha reserva contra esses aparelhos high-tech. que, à vista minuciosa, não passam de dispendiosa perfumaria! Não fosse pelo fato de as últimas máquinas de escrever terem sido recolhidas da universidade há bem mais de dez anos, eu ainda estaria dedilhando nas musicais teclinhas.

Aquilo era música sim senhor! O oportunista e self-marketeer John Cage fez uma instalação desse tipo, porém somente para espantar a burguesia e embolsar algum tutu. Para ele era somente som e fúria, sem significado algum. Deixou de capturar com seu limitado talento artístico nanificado pelo grandiosismo de suas pretensões autolaudatórias o primitivesco ritmo tamboral de uma máquina de escrever, sobretudo quando havia uma tecla emperrada e você aqui e ali gritava filha da puta! Eram verdadeiros anapestos, acompanhamentos percussionais de batalha, gritos de torcida na final do Brasileirão!

Horas depois decidi dar um basta. Basta!, se não me engana a memória, foi isso o que falei. Fechei os olhos, prestei atenção na minha respiração como ensinam os mestres yodas, digo, yogis, e decidi que estava preparado para a tarefa. Pesou na resolução o gravame de que, se não terminasse logo de uma vez o treinamento, adeus lanchuco. E a esse ponto acrescento que já me acossava uma fome, como é mesmo o termo?, ah, canina. Mas, quanto à merenda, não houve recurso. Quando concluímos, já era hora do almoço.

Almocei no refeitório um bife que parecia reciclado de pet com cimento. Emparedamentos eram comuns há alguns séculos como pena a adúlteras na Polônia, e seguem campeonados pelos ignóbeis ultrarradicais defensores da moral sexual, que é como chamam o suposto direito de reação via violência do sujeito acometido de dor de corno. A colônia polaca em São Paulo, se não é tão alentada, tampouco jamais tinha sido numericamente desprezível. Antes, bastante significativa em um bairro judeu e em uma faculdade sionista como esta. Temi pela vida útil de minhas obturações, cuidando para não mastigar amálgama achando que eram pedaços do arroz, cotto un pò troppo al dente para o meu gosto. Como guarnição, esplêndidas batatas de isopor coloridas ao açafrão. Comida inapetecível ajuda a manter a forma, ponderei, entretanto um panfleto tentadoramente grudado no mural me instigou a chamar o disque-pizza logo ao regressar à sala dos professores. Dois almoços ao dia não devem obrar maravilhas para a forma física. Mas a minha já estava mesmo combalida, e nunca me importei em ser sexy, como pode um hipopótamo pretender ter a forma e o peso de uma vespa? Com um nariz desses, nunca pudera, quem sabe uma ema... Busquei ver o lado positivo da situação: a dupla refeição serviria para redobrar a minha higidez psíquica ante a perspectiva agonizadora de dar reinício às aulas do período da tarde.

Como era, repito, apenas previsível, lá estava eu, desamparado, ante um projetor e um computador que se obstinavam em me desobedecer. A atenção dos alunos, por natureza ligeira, já tinha se dissolvido em olhares inquietos, observações a melhor crer randômicas, vagos odores de flatos, tudo depois degenerando numa aterrorizadora explosão de tagarelices. Eu tinha sido derrotado pela máquina, tal a civilização sucumbira diante da razão instrumental, e agora teria que pedir ajuda a algum estudante desmiolado que conseguisse distinguir meus fonemas suplicantes em meio ao desempenho desinibido das matracas. Uma mocinha, de cabelo espetado colorido de laranja vômito e piercings pendendo de cada polegada de pele, veio em meu socorro. A julgar pela sua aparência, devia ser filha de mãe judia, razão que se somou à sua solicitude para que eu a acolhesse com entusiasmada empatia. Sentou-se na minha cadeira e começou a fuçar e futricar e afunhinhar na máquina.

De repente, começaram a pipocar imagens esvoaçantes na tela. Sumo vexame!, não eram as que eu preparara para aquela apresentação, porém uns infamantes flagrantes da última páscoa, ocasião na qual, após ter perdido outra aposta de truco para meus assim-ditos colegas professores, eu tinha sido obrigado a acompanhar os festejos vestido de bridezilla. Agora os olhos de todos os fedelhos finalmente se concentravam para analisar as imagens para, com comentários que fariam corar um estivador, caçoarem impiedosamente de mim.

- Calem-se, hienas! – gritei, exasperado. E a senhorita trate de exibir o documento certo!

Mas já era tarde. O sinal tocou, e todos foram se levantando, não pondo o mínimo reparo nas minhas últimas palavras, com as quais eu tentava indicar-lhes as leituras para a próxima sessão. Os alunos de hoje em dia têm modos terríveis. Rir de um professor na sua frente semelha a contar uma piada de sogra na presença da mãe de sua esposa. No mínimo, uma deselegância. E raramente tomam banho. Os alunos e as sogras.

Humilhado, percorri o corredor que me devolveria à minha sala, onde eu poderia recompor-me com alguns mililitros, melhor, centilitros de uísque. Fui interrompido no trajeto pela minha priminha Sara, que mal iniciava um curso naquela faculdade e que parecia ansiosa e preocupada. Ai, que criatura medonha! Tremia seguidamente os olhos, de modo aflitivo, e puxava as orelhas de uma mochila que era também um coelhinho de pelúcia. Contou que planejava ir neste ano aos jogos acadêmicos no interior do estado, sabe, para se enturmar pois era novata, mas que seus pais a tinham proibido de viajar, sob a alegação de que tais encontros eram somente um pretexto, mais velho que a serra e menos crível que um relatório da CIA, para a promoção de orgias e outros atos de prostituição.

Comiserei-me da coitada. A superproteção a tinha convertido em uma jovenzinha mesmo esquisita, cheia de fricotes e de tiques. Raciocinei que a perda da virgindade é um importante ritual de passagem para uma vida digna desse nome, e que se a pobre seguisse as exortações familiares e tivesse de se contentar com um conúbio tardio e mal-arranjado em razão da premência da idade já então avançada de donzelona, tanto estrogênio dilapidado acabaria se refletindo no surgimento de graves distúrbios psicossomáticos, como o cultivo de um buço que daria um refúgio perfeito a toda espécie de parasitos, tal como tocou ocorrer à minha estimada Tia Celinha.

Disse-me, então, que precisava da minha ajuda, pois tinha tido uma ideia. Se era verdade, isto é, que uma ideia houvesse conseguido reverberar no vácuo daquela cabecinha, então convinha considerá-la sem desdém. Respondi que sem dúvida alguma a ajudaria, fosse o que fosse. Sugeriu-me, então, que eu intercedesse por ela, tentando convencer seus pais de que o tal encontro consistia de fato de jogos acadêmicos, uma tradição ordeira e bem monitorada, e não de um congraçamento da alçada dos órgãos de saúde pública. Preveni que a ideia talvez não resultasse, pois seus pais nunca tinham demonstrado consideração com as minhas opiniões, em vez disso, não cansavam de expô-las ao ridículo. Contudo, ela continuou me fitando com os seus olhinhos piscapiscantes, e logo em seguida, já sentindo que, ao continuar me expondo à visão daqueles tiques, um arrepio se preparava para em muito breve deslizar suas garras minha nuca abaixo, apressei-me a concordar e assim me livrei a tempo do espetáculo mortificante daqueles cacoetes sinistros.

- Alô, Tia Sheila?

- Quem é vivo sempre aparece! Salve, Bummy! E então, a que devo sua aparição? Se está pensando em pedir dinheiro emprestado, desista, que estamos reformando o apartamento e a caixinha está vazia.

- Folgo em saber da reforma, minha tia, já era tempo, nunca fui mais à sua casa porque sempre que ia à sala de banho acabava tomando uma ducha da válvula do vaso sanitário. E sempre saía branco que nem palhaço de tanto pó de reboco soltando das paredes e se impregnando na minha pele acnéica. Mas se acalme, que não pretendo desfalcar a sua bolsa pretensamente combalida. É que estou com saudades e pensei em dar um pulo aí para jantar com vocês.

- Boa idéia. Assim você já nos traz algo pronto, e salvamos a grana da janta – disse meu tio Ben, que falava da extensão.

Casal parcimonioso esse. Antes de chegar ao estacionamento, fui tentar sacar dinheiro no banco. Soube então que, por conta de uma tentativa de assalto, o posto da faculdade estava suspenso para a reativação do sistema. À frente da máquina de autoatendimento perfilavam umas quarenta pessoas. Não havia o que fazer. A demora era ainda maior porque haviam trocado recentemente o software que fazia correr as máquinas, e os clientes pelejavam para retirar suas novas senhas alfanuméricas, as quais iam extraindo da máquina antes de efetuar a transação propriamente dita. Este mundo está mesmo se transformando num tecnoinferninho, rivalizando com o nono círculo. Chegados aqui, melhor mesmo perdermos toda a esperança. Muito em breve não poderemos espirrar sem antes tirarmos uma senha. Usaremos algum aparelho para tirar as meias, e outro para manter os pares casados, ao invés de simplesmente amarrarmos ou embolarmos uma na outra.

Resignadamente, tomei meu lugar na fila. Já era passada meia hora, e o progresso tinha se resumido a alguns passos. Foi quando uma mulher de meia-idade, que acabara de trocar algumas palavras com o moço que estava à minha frente, tomou meu lugar na fila, sem qualquer tentativa de dissimulação e sem proferir qualquer justificativa. Indignado, martelei meu dedo indicador na sua clavícula. Ela olhou para trás.

- Minha senhora, a fila é lá no fundo!

- Ora, eu sei disso, não sou nenhuma débil mental, nem é preciso doutoramento para se entender de filas. Deixe-me explicar. É que eu ofereci cinco reais ao moço aqui da frente em troca do lugar dele. Ele recusou, mas disse que, se eu quisesse, poderia fingir que estamos juntos e ficar atrás dele.

Que despautério! Reaprumei-me. Com lógica rigorosa e irretorquível, rebati:

- Como é que é? Mas então a senhora deveria oferecer a mim os cinco reais. Como eu também recusaria, a senhora ficaria atrás de mim, onde teria de oferecer a quantia à moça aqui atrás, e assim sucessivamente, até chegar ao final da fila. Como a senhora vê, de uma maneira ou de outra, o seu lugar é no fim da fila!

Ela não se deixou perturbar:

- Mas eu jamais lhe ofereceria cinco reais! Em primeiro lugar, porque o senhor não tem cara de muitos amigos e recusaria só de birra, mesmo se precisasse. Em segundo lugar, porque, embora um tanto desleixado e sobrepeso, bem se vê que o senhor usa roupas boas, ora, nunca aceitaria uma proposta de cinco reais.

- Então me ofereça cinquenta.

Ela abriu a bolsa e pescou uma nota.

- Tó. É minha última.

E foi assim, graças a esse estranho acontecimento, que me embaralhou as ideias a ponto de fazer-me esquecer do pobre Cris no poste do campus, que eu pude pagar a conta da rotisseria e chegar em tempo para o meu jantar familiar.

Exortei meus tios a que viessem à razão. Nem todos os adolescentes são pervertidos obcecados pelo sexo, apenas os normais. A pequena Sarita já era uma mocinha, eles tinham de permitir que ela saísse do ninho e aprendesse a voar, ah, nenhuma referência às galinhas, que, como se sabe, só dão rasantes. Que eles nem sempre estariam por aí para ajudá-la em tudo...

- Fala, Jeremias!

- Ô, ave negra!

Enfim, que jovens devem conviver com outros jovens sob pena de...

- O que ela lhe ofereceu para que você viesse aqui promover toda essa campanha?- perguntou Tio Ben.

- Ela disse que nunca mais estalaria os dedos na minha frente nem piscaria com um olho só enquanto torce o outro junto com a ponta do nariz – respondi, suspirando com sinceridade.

- Ai, Bummy, você e suas frescuras...

- Ele é a pessoa mais fresca que eu conheço! – acrescentou meu tio. É sim. Quando ele quer esboçar um comentário jurídico para fazer a figura do sabichão, diz que acha que a loteria de animais deveria ser legalizada. Ele não diz jogo do bicho.

- É, e quando ele vai para casa de alguém e quer fazer cocô, ele não pergunta onde está o banheiro, mas onde se situa a sala de banhos.

Explodiram em gargalhadas. Mas prosseguiam com suas invectivas, ao mesmo tempo em que mastigavam um frango ao molho de laranjas que desaparecia freneticamente, como se vitimado por um decaimento radioativo.

- Ah, e ele não diz bunda, ele diz popô...

Agora que o assunto resvalava para o escatológico, ensaiei uma retirada providencial. Pedi licença para ir à cozinha.

- Mais vinho.

Quando retornei, eles se olhavam cumplicemente.

- Tudo bem. Nós deixamos a Sarita ir viajar. Mas sob uma condição.

- Manda lá.

Tia Sheila, com um sorriso petulante e lançando olhares cúmplices ao maridão, prosseguiu:

- Corre à boca pequena, rumor de família, você sabe, que você tem uma tatuagem secreta.

- Você podia mostrar pra gente – prosseguiu meu tio.

Congelei no meu posto. Mais humilhações, quando isso ia acabar? Mas eu havia prometido à jovem Sara que liquidaria o assunto.

- Vamos, Bummy, mostre o popô pra gente...

Risos. Levantei-me e, invocando toda minha ancestralidade de martírios, baixei as calças para aqueles santarrões. Ela datava dos tempos de universidade e rock n'roll. Um arroubo juvenil, por assim dizer. Consistia em uma declaração de amor à minha Rebeca de então. Levantei as calças. Tornei a sentar.

- Mas o que diz mesmo? – perguntou minha tia, bancando a sonsa.

- Pelo que eu entendi, diz Férias felizes em Pindamonhangaba - prosseguiu o tio.

- Não, seus troçadores de terceira idade e categoria, diz Rê, amor de verdade não acaba.

- Mas porque uma legenda tão grande?

- Que pergunta, repolhinho, é claro que se a legenda fosse menor, numa bunda desse tamanho, ninguém enxergava nada...

E retomavam as gargalhadas infames.

Aguentei com compostura até que se esvaziassem os copos e, quando saí do seu apartamento, entrançando as pernas de tão bêbado e rosnando contra o elevador que não chegava nunca, uma intuição me fez estremecer: Cris, onde estava o Cris? Desesperado, guiei até a faculdade, mas o poste onde eu o havia deixado se encontrava espantosamente despovoado! Temia pela minha incolumidade física quando Karl soubesse que eu havia perdido o cachorro de seu chefe. Começava a chover fortemente e desisti de seguir procurando-o pelo campus. Agora era rumar para casa e esperar pelo pior.

No meio do caminho, uma luzinha amarela começou a piscar no painel do carro. Subitamente, o carro estancou no meio da rua. Girei o contato repetidas vezes, e nada de o carro pegar. Amaldiçoei esse mundo de máquinas que nos escravizam e nos deixam na mão só para deixar claro que somos absolutamente dependentes delas. Estavam livrando um complô contra mim, decerto porque no último shabbat, atrasado para a sinagoga, eu havia chutado indignado um parquímetro que se recusava a funcionar, o qual caiu como morto, sem dobrar os joelhos, no meio da calçada. Por sorte, era fim-de-semana, e não havia policiamento. Procurei outra vaga e fingi que nada tinha acontecido.

Passou então uma viatura de trânsito. É a minha salvação, pensei. Saí do carro e acenei para eles. Lavraram-me uma multa e me aconselharam a chamar urgentemente um guincho, a fim de que se procedesse à desobstrução da via pública. Disseram que prosseguiriam sua ronda e que estariam de volta em menos de uma hora, e, caso meu carro ainda estivesse lá, seria prontamente recolhido à garagem do departamento do trânsito da qual, vencidas as etapas burocráticas de praxe, e pagas as tarifas públicas, inclusive diárias de depósito veicular, poderia ser liberado em menos de três meses.

Tentei abrigar-me sob uma marquise. Esperei um pouco. Os carros poucos que passaram não se detiveram a meu aceno. Mundo cão, resmunguei. Senti que a chuva enfraquecia, olhei para o céu para me certificar, censurando intimamente o criador pela benção daquele dia de cão, quando de repente todo o conteúdo de uma calha que naquele instante se desobstruíra se despejou sobre meus olhos. Chega de protestos íntimos, então. Gritei alto nomes. Tentei discar do celular para Karl, mas a estúpida secretária virtual do aparelho pedia, num desconcertante sotaque paulistano:

- Fale agora o nome da pessoa para quem você deseja estar ligando.

- Karl – repetia- Karl.

- Por favor, tente de novo, não estou reconhecendo o nome da pessoa com que você está tentando estar se comunicando.

Vociferei minha ira contra a tecnologia digital. Tentei achar o número de Karl na agenda do telefone, mas isso era inútil como seguir placas de trânsito em São Paulo: elas lhe dão uma vaga noção de para onde você deve ir, mas, se você se fia nelas, acaba parando na frente da mesma placa. Xinguei o aparelho e toda a sua progenitura.

Uma luz se acendeu no predinho à frente do qual eu me encontrava. Dei-me conta de que estava em face da tabacaria do velho Moishe Gavin, e foi ele mesmo quem assomou à porta, esbravejando contra quem lhe roubara o sono com tanta gritaria e palavras de baixa extração. Expliquei ao vetusto patrício que estava tentando sem sucesso fazer um telefonema, mas não conseguia penetrar no cipoal de comandos da agenda telefônica. Tive de prosseguir gritando e explicar tudo duas vezes, pois o ínclito decano era surdo.

- Dê-me o portátil aqui – disse o deão, arrancando-me o aparelho da mão. Enquanto apertava três teclas com seus dedos trêmulos de matusalém, ele me perguntou:

- O que houve com o carro? – crispando os olhos baços que se esforçavam para conseguir enxergar o veículo cujo pisca-alerta reluzia na escuridão.

- Pane-motor – bradei.

- Vai passar – disse, dando-me tapinhas aos ombros e entregando-me o aparelho. Depois sumiu atrás de sua porta.

Era incrível. O aparelho chamava. Em um instante, Karl estava no outro lado da linha. Expliquei-lhe a situação, entre soluços e fungadas. Pedi que viesse imediatamente. Ao chegar, informou-me de que já havia chamado o guincho. Contei-lhe, então, com lágrimas nos olhos dissolvidas na torrente de chuva como no monólogo do androide paranoide do Blade Runner, que havia perdido Cris, que o havia procurado por toda parte e não restava esperança.

Comovido com a minha histeria, Karl procurou me tranquilizar, fazendo-me sentar no banco de seu carro. Informou-me que havia sim uma solução, Cris tinha um número de celular, é verdade!, que conectava com um chip instalado em sua coleira, através do qual poderia ser localizado por GPS. Discou então para o número do cachorro, e descobrimos que ele se encontrava são e salvo no canil da Prefeitura.

Recomposto, agradeci ao inventor daquela engenhoca localizadora por livrar-me daquele apuro. Rumamos para o departamento de zoonoses, que ainda se encontrava aberto. Lá estava o serelepe Cris, na sua jaulinha, ainda acordado, confraternizando com outros colegas canídeos. Assim como o uísque, a tecnologia que opera desgraças é a mesma que pode operar milagres, tudo é uma questão de dosagem ou approach, sentenciei.

- Toda essa história do cachorro serviu para provar de uma vez por todas que eu não sirvo para ser pai- disse, tentando vilmente explorar minha falta em proveito próprio.

- Não – contestou Karl- isso apenas comprova que a paternidade, talvez à diferença da maternidade, é menos uma vocação que uma tarefa. Mas, para evitar novos transtornos, vamos fazer o seguinte: amanhã você acorda e deixa o Cris num pet shop, para que lhe dêem um banho e passem nele remédio antipulgas. E você só vai ter que buscá-lo depois do trabalho, ou pedir que o entreguem em casa.

- Remédio antipulgas?

- Bem, depois dessa estadia no canil público, 20 chances em 20 para ele estar infestado.

Imediatamente senti comichões em todo o corpo.

- Karl, elas estão me atacando. Vamos direto para um hospital, eu sou extremamente alérgico a pulgas...

- Deixe de frescura, você é alérgico sim a banhos! – respondeu, aumentando o volume do rádio até que minhas reclamações desaparecessem sob o batuque de um hit funk.

Cris estava sentado no banco traseiro, com a cabeça entre o vão dos bancos dianteiros, e se dessedentava lambendo as minhas orelhas ensopadas. Lembrei-me então de um filme pseudocult mongol e meio mongol, a que eu assistira há alguns anos. Um cachorro, que havia sido muito maltratado pelos homens, recusava-se a morrer porque, segundo as leis cármicas, teria de reencarnar como homem. Mencionava-se uma crendice antiga, segundo a qual o cão seria a última encarnação das almas antes de acederem a uma vida humana.

Refleti que isso não fazia sentido. Mais provavelmente, deveria dar-se o contrário, pois um cão exibe todas as características de serenidade, de lealdade e de dedicação integral aos outros que perseguimos arduamente ao longo de nossas vidas, de modo que apenas depois de ter atingido a perfeição ética compendiada em tais virtudes, é que deve ser dado a um homem poder reencarnar como um cachorro.
A Moninha, ad memoriam, semper vivas!

São Paulo, 2006, sob encomenda de J.S. que especificou uma continuação de As Aventuras de um Judeu Errante tendo por tema cachorros.