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Página número um - sobre o alto da página, soando como ameaça. O escritor se repreende, vamos, é hora de começar. Também a ocasião de uma ironia travessa, demasiado óbvia embora ele por um momento possa se considerar esperto por isso: não sabendo como iniciar a obra, o escritor vinga-se de seu bloqueio criativo elegendo-o como tema.
Então não vamos falar de nada, e não quero ninguém depois reclamando que o que leu não tinha assunto nenhum. Mas qual a real importância de algo ter sentido? Palavras, gestos, ruas têm sentido, mas a maioria das coisas nesta vida não tem sentido nenhum. Então Deus deve ser tudo, jardineiro, polícia, professor, modelo fotográfico, tudo menos escritor: as coisas que faz não precisam senão existir, tenham ou não razão de ser, existir consiste em não precisar ter sentido.
Não fosse essa ressalva, havia que dar algum prazer ao escrivinhador brincar de Deus... Mas o leitor espera beleza e sentido no que lê, enquanto as obras do demiurgo raramente exibem esses atributos. E quando o fazem, temos então plena razão em falarmos em milagre.
Mas há ainda o vazio inescapável da página um e prosseguindo na metáfora da criação divina "ex nihilo", um Deus minimamente responsável tentará criar o melhor dos mundos possíveis. E o melhor romance ou livro de contos ou a grande coleta de poesia possíveis? pierres menards como nós continuarão tentando escrever essa obra arquetípica, a um tempo irreal pois irrealizável, a outro mais real que qualquer outra coisa que já tenhamos de fato lido ou escrito, uma vez que é essa quimera o que nos instiga a prosseguir preenchendo páginas um ou abrindo um livro numa delas.
Ler, por sua vez, requer um grande investimento de tempo, e por isso ler é cada vez mais difícil nestes dias. Já ouviu falar em "novelblank"? É como se diz quando você chega ao fim de um romance de 500 páginas e já não lembra do que aconteceu até a página 490. Dissem que para a pessoa média, sete dias depois da conclusão de um romance, o "novelblackout" é total. Então todo aquele tempo lendo o livrão foi jogado no lixo, e é melhor mesmo você se ater às informações sobre ele contidas na à sinopse da Wikipedia.
Com um livro breve de contos, penso que o mesmo não ocorrerá: nem o volume de informação é tão grande que ultrapasse nossa capacidade de retenção, nem o tempo dispendido será tão longo para que, sobrevindo a desmemória, se tenha perdido muita coisa. Então me veio a idéia: tenho sete contos a meio escritos, se os completo em sete dias terei um livro composto de sete peças para o leitor ler à razão de um por dia, até que, chegado ao fim, terá lido meu livrinho em uma semana, sem hercúleos esforços.
Resta saber se será possível reescrever tanta coisa em um período tão curto. O Kerouak conseguiu, mas relatando experiências que tinha vivido, trocando nomes aqui e ali, sem precisar queimar os fosfatos criando enredos críveis ou consistentes, e essa, descenessário dizer, é a parte árdua do trabalho. Penso por outro lado em certos romances, cuja complicada escritura reclamou décadas inteiras. Tudo somado, me servirei da dupla abordagem: falarei tanto de gente e lugares que conheço como de quem e onde nunca conhecerei, e ,é claro, deixarei igualmente que falem por si.

POR QUE OS CÃES NÃO REENCARNAM


Refastelados confortavelmente em nossas vidinhas, fazemos de conta que, ao seguir uma dieta de precauções, poderemos evitar que o imprevisível cause estragos nos costumeiros andores da nossa rotina. Mas o inopinado é como um vírus de computador, e, por mais que o esconjuremos com mantras em iorubá, olhos gregos comprados na feirinha de sábado ou até com o trabalho de instalar os últimos programas defensivos, não há como impedir que mais dia menos dia topemos com um daqueles ousados desbravadores de barreiras.

Quando era ainda menor, várias vezes presenciei no circo sujeitos que andavam através de cortinas de fogo. Portanto, romper esses ditos firewalls, para os habilidosos ou treinados, deve ser brincadeira de criança. Nesses casos, é melhor ter o pulso firme e aceitar racionalmente apagar o incêndio ou apelar para o plano B, o qual consiste em soberanamente fingir (e sobretudo para si mesmo) não perceber que algo de estranho está se esgueirando e prosseguir leda e desatentamente nos nossos caros cursos habituais até que nosso organismo, numa espécie de somatização às avessas, nos surpreenda com um inesperado colapso de nervos.

Logicamente se enganaram de grosso os nossos antenatos chamando o imprevisivel de imprevisível. O que já era previsível, já que alguns deles achavam que a terra era chata, embora o horizonte visto de qualquer lado é obviamente redondo, e que de outra feita disseram que tubarões eram cães aquáticos, mas eu nem ninguém que ame a sua vida teria a coragem de pendurar uma coleira com um pingente dizendo Rex num deles e mandar ele me trazer o jornal por favor sem babar.

Nossos predecessores nunca exceleram pela inteligência e é por isso que o que cunharam de imprevisível é em 90% dos casos plenamente antecipável. Acompanhe. Você empresta o seu carro para seu amigo ir a uma festança de casamento, ele enche a cara como toda pessoa boa da cabeça enche a cara numa festa de casamento, e na volta desliza na autoestrada, embora seca. Com a voz embargada de autocomiseração ele lhe telefona e diz: "Mano, tô todo enfunhunhado, dói tudo, parece que caí vestido de superman do Morro do Joá. Mas Deus é pai, não aconteceu nada sério", "E o carro, e o carro...", você tenta abreviar a ladainha e ouve como resposta um previsível "P.T., véio, deu P.T. na banheirona, aí, foi mal...". Ou então você ouve o boletim meteorológico de sexta e a moça do tempo diz "no domingo sol sem nuvens chegando a 30 graus". No sábado você confirma que "amanhã fará tempo bom ensolarado e seco, máxima de 31 graus", e enfim no domingo você já se encontra há mais de cinco horas dentro do carro: houve um deslizamento logo ali adiante no km 10, o acesso à pista contrária é impossível, pois ela é elevada, e aquela em que você está permanecerá parada até que uma esquadrilha de helicópteros retire todo o entulho da pista. Sem ter o que fazer, você liga o rádio e ouve a mesma mocinha dizendo "temporais com ventos de até 60km horários durante todo o dia, máxima de 10 graus podendo cair petaradas de granizo durante todo o período, deixe seu carro abrigado e evite sair de casa". Imprevisível ou plenamente previsível?

Os sinais do imprevisível são geralmente sutis, mas inconfundíveis. Dou-lhes o exemplo dessas estranhas revistas com que topei logo ao acordar, empilhadas ao lado do vaso na sala de banho, com as curiosas intitulações De Gatinhas, Meu Bebê e Eu e A Mamãe Contemporânea. Minha reação instintiva foi apanhá-las e, dando meia-volta, dirigir-me até a cozinha, onde Karl mergulhava uma colher na sua cumbuca cheia de iogurte mesclado com cereais, iguaria essa que eu, que não costumo refugar nada do que se possa levar à boca, há bem pouco tempo não concebia que pudesse ser adequada para o consumo de humanos ou assimilados. Já ia acrescentando algumas palavras pouco amenas à minha grimaça de revulsão, quando fui interrompido pela visão atordoante de uma massa semovente aveludada de amarelo terroso, a qual foi tomando forma nos meus aparatos de síntese perceptiva, até chegar a configurar um focinho e, depois disso, o corpo integral de um canídeo.

- Bom dia. Ah, antes que vocês me acusem de grosseria, Bummy, esse é o Cristóvam, Cristóvam esse é o Bummy, meu amigo humano, embora por precaução você melhor guarde a asserção para futura verificação...

- Cristóvam?

- Sim, com M no final. Chique, quase arcaico e decididamente neoaristocrático. Embora o último Cristóvam que eu conhecesse trabalhasse no setor de arrombamento de fechaduras emperradas. Profissão digna, como qualquer uma. E formalizada.

- ...

- A meu chefe 0correu a brilhante idéia, embora repentina, de levar a secretária gostosona para passear na praia, então, após extenuante elocubração, encontraram a solução astuta de apelar à minha solicitude, fazendo uma etapa a meia rota para deixar o Cris - posso chamá-lo assim?, dirigindo-se ao cão, e então de novo para mim - sob o meu devotado cuidado.

- E você aceitou? Quanto?

- Não era bem um pedido nem uma barganha... Na verdade, soou mais como uma ordem implícita, um isso-senão-aquilo.

-Aquilo?

- É, aquilo. Aquilo que você não sabe exatamente se é mas pode ter ser certeza de que é aquilo mesmo que você não sabia.

Fiquei sem saber.

- Eu sei o quê? Desculpa, você me perdeu...

- Não, Bummy, você não sabe nada, como é do seu feitio. Traduzo, bota atenção: ou isso ou aquilo, sem terceira opção como numa eleição de segundo turno.

- Seu estilo heideggeriano não me intimida nem prova minha estupidez. Mas pulemos esses solecismos das implicaturas proposicionais e contextos descontextualizantes e voltemos ao cão. Fato consumado, para quem podemos discar?

- Bummy, não é o fim do mundo, é apenas um cachorro.
- Ele morde?

- De fato, cães, entre outras coisas, babam e rosnam e roem e mordem, será que fui exaustivo?, mas este aqui só de brincadeira, é um golden retriever, ideal para a prática do frisbee e para a companhia de crianças pequenas.

Crianças pequenas, isso me lembrava de alguma coisa, uma reminiscência envolta numa espessa bruma de esquecimento voluntário que me voltava lentamente. Imaginei um retriever roubando o chocalho preferido de uma criança toddler e o corroendo em pedaços, e, ao contempo, o ex-proprietário entregue a um choro convulsivo e nocivo à higidez psicológica dos meus vetustos e já combalidos vizinhos. Enfim, raio, trovão, fogo na mata, a capa da ilustrada anual Relação Estatística dos Nomes de Batismo Preferidos No Século XXI deu um giro mortal no palco da minha consciência, redespertando os meus receios. Só então me ocorreu que as famigeradas publicações ainda me pesavam sobre a mão direita, aquela que eu uso para mexer colheres e escovar, quando lembro, minha quase terceira dentição.

Nesse delongado ínterim, Karl me incentivava a passar a mão na besta doméstica, o que fiz, repetindo como um tolo "mas que cachorro bobo, mas que cachorro bobo", sem que aparentemente a fera se zangasse. Sem dúvida, se tratava de uma raça particularmente tolerante para o convívio com desafiadoramente irritantes espécimes humanos. Vivendo e aprendendo, pensei, vou reter essas informações para uma ocasião futura, afinal de contas, o único bicho peludo com que eu até esse momento tivera um contato mais prolongado tinha sido a minha diletíssima tia Célia, a qual, apesar de diariamente e por toda parte ser chamada de cachorra, não pertencia até ulterior atestação à espécie canina.

Entretanto, vencida a surpresa, era hora de tirar a história das revistas a limpo. Depositei-as sobre o balcão ao lado da famigerada tigela, com ar ao mesmo tempo falsamente indignado e retoricamente interrogativo. Ele me fixou nos olhos num tom sarcástico:

- São uma leitura desafiadoramente edificadora, você deveria tentar.

- Edificadora é uma microempresa fundada por um mestre-de-obras. Esclareça uma coisa, você não está pensando em ter fedelhos, está?

- Há algo que nos proíba?

- Não, a não ser o fato biológico de um homem não poder engravidar, além do fato extrabiológico de você ser um judeu...

- Judeus não têm filhos?

- Têm, embora contribua para isso o fato de as crianças não saberem antecipadamente que terão mães judias. Mas homens solteiros, sem constituir família, não, não me parece corrente na comunidade...

- Então eu não sou um judeu como se deve, sou um judeu errado?

- Eu o parabenizo pelos cacófatos, mas não posso dizer que você seja exatamente o paradigma do bom judeu. Se não me falha a memória, no último carnaval, fui eu ou foi você quem escolheu sair fantasiado de Britney Sperms?

Opa... Karl foi assumindo tons gradativos de rubor coleriforme. Antes que atingisse o ultravioleta, privando-me do deleite de enxergar a sua descompostura, tive de ceder:

- OK, eu retiro o que disse. Mas você tem que parar de ser tão suscetível, Karl! Você tem a vulnerabilidade de um juiz do trabalho. Escorregar sem querer um você numa conversa ao invés de tratá-lo em Vossa Excelência Magnificentíssima já vira um desacato. Desculpas aceitas?

- Não é o bastante.

- OK, compensação!

Seu olhar sefaradim cintilou com a oferta. Sua boca estirou-se com um sorrisinho sádico. Apontou-me o cachorro. Como ressarcimento pelas minha boca grande, o cachorro ficaria sob a minha guarda. Com estoicismo, aceitei o fardo - tudo somado, o que significa conviver em sociedade senão usar a oportunidade de ocupar os outros com as atribuições que eram nossas?

- Bummy, papo sério agora. Anos de repressão e o trauma das zombarias escolares (não que você seja extremamente afetado, estou fazendo uma suposição) internalizaram em você uma negação à ideia da paternidade: "já que eles não admitam que eu tenha filhos, então que se dane, eu não quero mesmo...". Pense nisso.

Infelizmente, com o contratempo causado pelo meu amigo quadrúpede, tive de sair de casa às pressas, sem tempo em pensar em algo infame para retrucar à peroração bom-mocista de Karl, digna de figurar numa coluna semanal de aconselhamento de um periódico de fofoca gay (me orgulhei desse último cacófato e lembraria de usá-lo quando reabordasse o assunto com ele). No assoberbamento, igualmente não tive o ocasião de tomar um banho. Paciência, pensei, a única criatura que poderia preocupar-se em me cheirar, Cristóvam, parecia indiferente ao meus odores.

Confesso que me agradava a sua companhia: sempre bonachão e curioso, não reclamava dos meus cigarros nem desmentia os mondegreens que eu ia cometendo ao cantar as letras das músicas rádio enquanto eu nos dirigia até a faculdade. Infelizmente, tive de me separar dele ao tentarmos adentrar o edifício. Um segurança, sem usar palavra, me fez voltar a atenção com o indicador voltado para acima, à esquerda, onde, entre dois anúncios de papel sulfite colados sorrateiramente na parede anunciando serviços de acompanhantes, enfim encontrei visualmente uma placa que discreta, laconicamente, com desenhos de vultos em negro cercados de círculos vermelhos e cobertas com uma faixa em diagonal também vermelha, se interditava o ingresso de animais e de pranchas de surf. Bem feito para vocês surfistas, pensei mordazmente, com um sorriso de íntima satisfação, acaso estamos no Guarujá? Um pouco de Schadenfreude me ajudou assim a superar a inesperada frustração.

Sem outra alternativa em vista, socorri-me de um poste, ao qual atei a coleira do meu companheiro peludo. Esperei que ele desviasse a cabeça para outra direção, e, vlasch, saí à francesa, mas o bicho começou a latir, desconsolado.

De repente, eu me tornara o alvo da censura consensual dos transeuntes e me expunha ao risco de um linchamento que, dentre outras sequelas, poderia deixar ainda mais torto o meu famoso e viril narigão quatrocentão. Casamentos intragenéticos são o trunfo da prosperidade dos judeus, que assim evitam a diluição do patrimônio de um círculo doméstico, mas igualmente a causa de sua ruína biológica. Dia desses não vai fazer a menor diferença se você mulher judia engravidar e estiver em dúvida entre seu marido ou o filho do levita: o exame genético dará o mesmo resultado. Bravo!
Voltei ao cão para lhe extender as explicações devidas. Expliquei-lhe em bom português, misturado com fiapos de yidiche e inglês internético, que ia dar um pulinho sozinho lá dentro. Não demoraria muito mais que uma partida de cricket. Não, não se tratava de castigo, ele nada fizera errado, mas faria, caso ingressasse no prédio comigo. É que, por motivos que refogem a uma sóbria derivação lógica, apelando a postulados atrasados como a saúde pública e a política de acidentes do trabalho, algum reitor algum dia algum acontecimento desengatilhador baixara uma instrução que proibira a entrada de animais não-humanos nos prédios da prost-, digo, instituição. E por que eu deveria entrar ao invés de fazer companhia a ele e irmos, digamos, saltitar no contíguo parque Buenos Aires? Ora, a razão disto era, como tudo na vida, anote para lembrar mais tarde, de natureza econômica. É que eu precisava trabalhar para ganhar minhas módicas paguinhas a fim de mês, com as quais poderia, instantia gratia, comprar seu pacote de bonzo ou o que se venda nestes idos. E ocorria que eu desempenhasse tais atividades justo ali dentro, embora houvesse preferisse realizá-las por telepatia ou via uma tábua de oui-ja desde o lânguido ambiente da minha cama.

Sumo insucesso! Meus laboriosos esclarecimentos tombaram em ouvidos moucos, e notem que cientistas, esses ratos deglutidores de verbas públicas de pesquisa, ousam sustentar que cães ouvem melhor do que nós humanos ou assimilados. Ao menos o Cris, a toda aparência, não era do tipo de cachorro que ouve. Até uma criança menor que ele ficaria quietinha se lhe ameaçasse mudar do intolerável canal juvenil e seus dubladores velhos que, sem o sentido do ridículo, teimam em fazer vozes de neném. Mas meu apelo à audição compreensiva do Cris, codinome Cre-tino, resultara inútil: não consta que ele fizesse qualquer senso do que eu dizia. Assim, precisava encontrar outro método, e rápido, já que o tempo ululava junto com a odiosa sirene que anunciava o início da primeira aula. Estava atrasado e iria acabar perdendo o abono de pontualidade.

Minha orgulhosa ignorância a respeito da vida não-sexual dos cães (a sexual eu conhecia de ouvir-dizer, pois tinha muitos amigos e amigas que confessadamente a praticavam e mesmo e recomendavam com veemência, pois supostamente gerava excelente proveitos físicos e espirituais, só havia que cuidar com, tapem seus ouvidos ó anjos, as tais DSTs, entre elas a sífilis, a qual, em estágio terciário, dá tanto barato que acredito que devêssemos nascer com ela) não era (a digressão foi um bocadinho longa, relembro o leitor que estava dizendo que minha orgulhosa ignorância a respeito da vida não-sexual dos cães... não era..., conferir na testa do parágrafo) tamanha que deixasse de me ocorrer que cachorros costumam aceitar certos comandos, desde que proferidos com palavras simples e bem articuladas, como se fala com um estrangeiro, por exemplo, ovasiões nas quais, em virtude de alguma agência extralinguística insondável no final até se consegue se fazer entender e se chega mesmo a compreender os impropérios ignóbeis que nos lançam. Meu pai é proficiente em quaisquer línguas que não conhece, a saber, todas, pois aonde quer que vá se faz efetivamente comunicar por meio de um sistema inconfundível e algo embaraçoso de gritarias, gestos de mão, caretas e as onomatopéias, as jóias da coroa verbal ou quase. Tentei minha sorte com um quieto!, o qual pareceu funcionar ou ao menos reter sua concentração sobre mim e assim parar de ficar puxando a correia de lado a outro. Era um retriever, não era? Testei sua obediência atirando uma garrafa de água mineral vazia, mas ele não desviou os olhos nem tentou apanhá-la. Perfeito. Orgulhoso de minhas habilidades de adestrador, segui meu caminho até o edifício da faculdade.

A manhã prosseguiu com as costumeiras intempéries e solecismos de uma indústria em que se persegue o impossível: ensinar a alguém a aprender o que não quer aprender sem que s soubesse antes bolhufas para ter o que ensinar. Confuso, mas é por aí, leia de novo. Minha secretária insistia em que eu dominasse o uso de um programa para slides, como instrumento otimizador da minha prática docente, de modo a poupar-me o uso do quadro-negro. De quebra, isso também me auxiliaria na prevenção de minha alergia ao giz de lousa. E o mesmo doc poderia ser usado anos a fio, sem ter de ser trocado. Adeus aulas custosamente planejadas! Tentador? Nada poderia, no entanto, contra o igualmente grave tema de minha alergia a estudantes beócios. Mas uma batalha por vez.

- É só apertar aqui, e aqui, depois aqui, aqui, não aqui, desse jeito, e...

Aquis, é sabido, são deíticos. Tudo pode e é aqui. Tantos aquis começaram a dar pane no meu sistema. A sequência de comandos deveria ser intuitiva, já que ela, uma graduada desmemoriada, que nunca lembrava do número do próprio telefone, e às vezes tinha que pedir ajuda para preencher uma ficha de hotel, parecia se desempenhar idoneamente na tarefa. Para mim, no entanto, tudo soava definitivamente arbitrário, e ainda freava meu aprendizado o meu preconceito racional (explico logo em seguida) contra esses gadgets modernosos, os quais, ao proliferarem comandos além do saudoso botão único que só ligava ou desligava, tornaram-se obtusamente ranzinzas. Suma chatice! Se ela resolvesse recitar Dante ou ler o Macbeth provocaria em mim uma morte menos lenta. Aliás, como alguém no século XXI ainda pode se interessar pelas lentas ruminações em estilo retorcido de quinhentos ou mais anos atrás? Aliás, como alguém de qualquer tempo e lugar pode deixar de se aborrecer com a explicação do funcionamento de um software que vai lhe roubar a terceira pausa de latte com biscoitos de Minas na incipiente manhã?

Sinto vivo dentro de mim um prurido de indiferença com relação a todo esse dilúvio de novidades com que nos afogam os gananciosos manufatores de artigos tecnológicos, que criam demandas artificiais por coisas absolutamente desnecessárias, malgrado pareçam boas e gerem bolhas. Bolhas que vão se enchendo tanto, até que um fia estouram as bolsas de todos nós. Por isso é que declarava racional minha reserva contra esses aparelhos high-tech. que, à vista minuciosa, não passam de dispendiosa perfumaria! Não fosse pelo fato de as últimas máquinas de escrever terem sido recolhidas da universidade há bem mais de dez anos, eu ainda estaria dedilhando nas musicais teclinhas.

Aquilo era música sim senhor! O oportunista e self-marketeer John Cage fez uma instalação desse tipo, porém somente para espantar a burguesia e embolsar algum tutu. Para ele era somente som e fúria, sem significado algum. Deixou de capturar com seu limitado talento artístico nanificado pelo grandiosismo de suas pretensões autolaudatórias o primitivesco ritmo tamboral de uma máquina de escrever, sobretudo quando havia uma tecla emperrada e você aqui e ali gritava filha da puta! Eram verdadeiros anapestos, acompanhamentos percussionais de batalha, gritos de torcida na final do Brasileirão!

Horas depois decidi dar um basta. Basta!, se não me engana a memória, foi isso o que falei. Fechei os olhos, prestei atenção na minha respiração como ensinam os mestres yodas, digo, yogis, e decidi que estava preparado para a tarefa. Pesou na resolução o gravame de que, se não terminasse logo de uma vez o treinamento, adeus lanchuco. E a esse ponto acrescento que já me acossava uma fome, como é mesmo o termo?, ah, canina. Mas, quanto à merenda, não houve recurso. Quando concluímos, já era hora do almoço.

Almocei no refeitório um bife que parecia reciclado de pet com cimento. Emparedamentos eram comuns há alguns séculos como pena a adúlteras na Polônia, e seguem campeonados pelos ignóbeis ultrarradicais defensores da moral sexual, que é como chamam o suposto direito de reação via violência do sujeito acometido de dor de corno. A colônia polaca em São Paulo, se não é tão alentada, tampouco jamais tinha sido numericamente desprezível. Antes, bastante significativa em um bairro judeu e em uma faculdade sionista como esta. Temi pela vida útil de minhas obturações, cuidando para não mastigar amálgama achando que eram pedaços do arroz, cotto un pò troppo al dente para o meu gosto. Como guarnição, esplêndidas batatas de isopor coloridas ao açafrão. Comida inapetecível ajuda a manter a forma, ponderei, entretanto um panfleto tentadoramente grudado no mural me instigou a chamar o disque-pizza logo ao regressar à sala dos professores. Dois almoços ao dia não devem obrar maravilhas para a forma física. Mas a minha já estava mesmo combalida, e nunca me importei em ser sexy, como pode um hipopótamo pretender ter a forma e o peso de uma vespa? Com um nariz desses, nunca pudera, quem sabe uma ema... Busquei ver o lado positivo da situação: a dupla refeição serviria para redobrar a minha higidez psíquica ante a perspectiva agonizadora de dar reinício às aulas do período da tarde.

Como era, repito, apenas previsível, lá estava eu, desamparado, ante um projetor e um computador que se obstinavam em me desobedecer. A atenção dos alunos, por natureza ligeira, já tinha se dissolvido em olhares inquietos, observações a melhor crer randômicas, vagos odores de flatos, tudo depois degenerando numa aterrorizadora explosão de tagarelices. Eu tinha sido derrotado pela máquina, tal a civilização sucumbira diante da razão instrumental, e agora teria que pedir ajuda a algum estudante desmiolado que conseguisse distinguir meus fonemas suplicantes em meio ao desempenho desinibido das matracas. Uma mocinha, de cabelo espetado colorido de laranja vômito e piercings pendendo de cada polegada de pele, veio em meu socorro. A julgar pela sua aparência, devia ser filha de mãe judia, razão que se somou à sua solicitude para que eu a acolhesse com entusiasmada empatia. Sentou-se na minha cadeira e começou a fuçar e futricar e afunhinhar na máquina.

De repente, começaram a pipocar imagens esvoaçantes na tela. Sumo vexame!, não eram as que eu preparara para aquela apresentação, porém uns infamantes flagrantes da última páscoa, ocasião na qual, após ter perdido outra aposta de truco para meus assim-ditos colegas professores, eu tinha sido obrigado a acompanhar os festejos vestido de bridezilla. Agora os olhos de todos os fedelhos finalmente se concentravam para analisar as imagens para, com comentários que fariam corar um estivador, caçoarem impiedosamente de mim.

- Calem-se, hienas! – gritei, exasperado. E a senhorita trate de exibir o documento certo!

Mas já era tarde. O sinal tocou, e todos foram se levantando, não pondo o mínimo reparo nas minhas últimas palavras, com as quais eu tentava indicar-lhes as leituras para a próxima sessão. Os alunos de hoje em dia têm modos terríveis. Rir de um professor na sua frente semelha a contar uma piada de sogra na presença da mãe de sua esposa. No mínimo, uma deselegância. E raramente tomam banho. Os alunos e as sogras.

Humilhado, percorri o corredor que me devolveria à minha sala, onde eu poderia recompor-me com alguns mililitros, melhor, centilitros de uísque. Fui interrompido no trajeto pela minha priminha Sara, que mal iniciava um curso naquela faculdade e que parecia ansiosa e preocupada. Ai, que criatura medonha! Tremia seguidamente os olhos, de modo aflitivo, e puxava as orelhas de uma mochila que era também um coelhinho de pelúcia. Contou que planejava ir neste ano aos jogos acadêmicos no interior do estado, sabe, para se enturmar pois era novata, mas que seus pais a tinham proibido de viajar, sob a alegação de que tais encontros eram somente um pretexto, mais velho que a serra e menos crível que um relatório da CIA, para a promoção de orgias e outros atos de prostituição.

Comiserei-me da coitada. A superproteção a tinha convertido em uma jovenzinha mesmo esquisita, cheia de fricotes e de tiques. Raciocinei que a perda da virgindade é um importante ritual de passagem para uma vida digna desse nome, e que se a pobre seguisse as exortações familiares e tivesse de se contentar com um conúbio tardio e mal-arranjado em razão da premência da idade já então avançada de donzelona, tanto estrogênio dilapidado acabaria se refletindo no surgimento de graves distúrbios psicossomáticos, como o cultivo de um buço que daria um refúgio perfeito a toda espécie de parasitos, tal como tocou ocorrer à minha estimada Tia Celinha.

Disse-me, então, que precisava da minha ajuda, pois tinha tido uma ideia. Se era verdade, isto é, que uma ideia houvesse conseguido reverberar no vácuo daquela cabecinha, então convinha considerá-la sem desdém. Respondi que sem dúvida alguma a ajudaria, fosse o que fosse. Sugeriu-me, então, que eu intercedesse por ela, tentando convencer seus pais de que o tal encontro consistia de fato de jogos acadêmicos, uma tradição ordeira e bem monitorada, e não de um congraçamento da alçada dos órgãos de saúde pública. Preveni que a ideia talvez não resultasse, pois seus pais nunca tinham demonstrado consideração com as minhas opiniões, em vez disso, não cansavam de expô-las ao ridículo. Contudo, ela continuou me fitando com os seus olhinhos piscapiscantes, e logo em seguida, já sentindo que, ao continuar me expondo à visão daqueles tiques, um arrepio se preparava para em muito breve deslizar suas garras minha nuca abaixo, apressei-me a concordar e assim me livrei a tempo do espetáculo mortificante daqueles cacoetes sinistros.

- Alô, Tia Sheila?

- Quem é vivo sempre aparece! Salve, Bummy! E então, a que devo sua aparição? Se está pensando em pedir dinheiro emprestado, desista, que estamos reformando o apartamento e a caixinha está vazia.

- Folgo em saber da reforma, minha tia, já era tempo, nunca fui mais à sua casa porque sempre que ia à sala de banho acabava tomando uma ducha da válvula do vaso sanitário. E sempre saía branco que nem palhaço de tanto pó de reboco soltando das paredes e se impregnando na minha pele acnéica. Mas se acalme, que não pretendo desfalcar a sua bolsa pretensamente combalida. É que estou com saudades e pensei em dar um pulo aí para jantar com vocês.

- Boa idéia. Assim você já nos traz algo pronto, e salvamos a grana da janta – disse meu tio Ben, que falava da extensão.

Casal parcimonioso esse. Antes de chegar ao estacionamento, fui tentar sacar dinheiro no banco. Soube então que, por conta de uma tentativa de assalto, o posto da faculdade estava suspenso para a reativação do sistema. À frente da máquina de autoatendimento perfilavam umas quarenta pessoas. Não havia o que fazer. A demora era ainda maior porque haviam trocado recentemente o software que fazia correr as máquinas, e os clientes pelejavam para retirar suas novas senhas alfanuméricas, as quais iam extraindo da máquina antes de efetuar a transação propriamente dita. Este mundo está mesmo se transformando num tecnoinferninho, rivalizando com o nono círculo. Chegados aqui, melhor mesmo perdermos toda a esperança. Muito em breve não poderemos espirrar sem antes tirarmos uma senha. Usaremos algum aparelho para tirar as meias, e outro para manter os pares casados, ao invés de simplesmente amarrarmos ou embolarmos uma na outra.

Resignadamente, tomei meu lugar na fila. Já era passada meia hora, e o progresso tinha se resumido a alguns passos. Foi quando uma mulher de meia-idade, que acabara de trocar algumas palavras com o moço que estava à minha frente, tomou meu lugar na fila, sem qualquer tentativa de dissimulação e sem proferir qualquer justificativa. Indignado, martelei meu dedo indicador na sua clavícula. Ela olhou para trás.

- Minha senhora, a fila é lá no fundo!

- Ora, eu sei disso, não sou nenhuma débil mental, nem é preciso doutoramento para se entender de filas. Deixe-me explicar. É que eu ofereci cinco reais ao moço aqui da frente em troca do lugar dele. Ele recusou, mas disse que, se eu quisesse, poderia fingir que estamos juntos e ficar atrás dele.

Que despautério! Reaprumei-me. Com lógica rigorosa e irretorquível, rebati:

- Como é que é? Mas então a senhora deveria oferecer a mim os cinco reais. Como eu também recusaria, a senhora ficaria atrás de mim, onde teria de oferecer a quantia à moça aqui atrás, e assim sucessivamente, até chegar ao final da fila. Como a senhora vê, de uma maneira ou de outra, o seu lugar é no fim da fila!

Ela não se deixou perturbar:

- Mas eu jamais lhe ofereceria cinco reais! Em primeiro lugar, porque o senhor não tem cara de muitos amigos e recusaria só de birra, mesmo se precisasse. Em segundo lugar, porque, embora um tanto desleixado e sobrepeso, bem se vê que o senhor usa roupas boas, ora, nunca aceitaria uma proposta de cinco reais.

- Então me ofereça cinquenta.

Ela abriu a bolsa e pescou uma nota.

- Tó. É minha última.

E foi assim, graças a esse estranho acontecimento, que me embaralhou as ideias a ponto de fazer-me esquecer do pobre Cris no poste do campus, que eu pude pagar a conta da rotisseria e chegar em tempo para o meu jantar familiar.

Exortei meus tios a que viessem à razão. Nem todos os adolescentes são pervertidos obcecados pelo sexo, apenas os normais. A pequena Sarita já era uma mocinha, eles tinham de permitir que ela saísse do ninho e aprendesse a voar, ah, nenhuma referência às galinhas, que, como se sabe, só dão rasantes. Que eles nem sempre estariam por aí para ajudá-la em tudo...

- Fala, Jeremias!

- Ô, ave negra!

Enfim, que jovens devem conviver com outros jovens sob pena de...

- O que ela lhe ofereceu para que você viesse aqui promover toda essa campanha?- perguntou Tio Ben.

- Ela disse que nunca mais estalaria os dedos na minha frente nem piscaria com um olho só enquanto torce o outro junto com a ponta do nariz – respondi, suspirando com sinceridade.

- Ai, Bummy, você e suas frescuras...

- Ele é a pessoa mais fresca que eu conheço! – acrescentou meu tio. É sim. Quando ele quer esboçar um comentário jurídico para fazer a figura do sabichão, diz que acha que a loteria de animais deveria ser legalizada. Ele não diz jogo do bicho.

- É, e quando ele vai para casa de alguém e quer fazer cocô, ele não pergunta onde está o banheiro, mas onde se situa a sala de banhos.

Explodiram em gargalhadas. Mas prosseguiam com suas invectivas, ao mesmo tempo em que mastigavam um frango ao molho de laranjas que desaparecia freneticamente, como se vitimado por um decaimento radioativo.

- Ah, e ele não diz bunda, ele diz popô...

Agora que o assunto resvalava para o escatológico, ensaiei uma retirada providencial. Pedi licença para ir à cozinha.

- Mais vinho.

Quando retornei, eles se olhavam cumplicemente.

- Tudo bem. Nós deixamos a Sarita ir viajar. Mas sob uma condição.

- Manda lá.

Tia Sheila, com um sorriso petulante e lançando olhares cúmplices ao maridão, prosseguiu:

- Corre à boca pequena, rumor de família, você sabe, que você tem uma tatuagem secreta.

- Você podia mostrar pra gente – prosseguiu meu tio.

Congelei no meu posto. Mais humilhações, quando isso ia acabar? Mas eu havia prometido à jovem Sara que liquidaria o assunto.

- Vamos, Bummy, mostre o popô pra gente...

Risos. Levantei-me e, invocando toda minha ancestralidade de martírios, baixei as calças para aqueles santarrões. Ela datava dos tempos de universidade e rock n'roll. Um arroubo juvenil, por assim dizer. Consistia em uma declaração de amor à minha Rebeca de então. Levantei as calças. Tornei a sentar.

- Mas o que diz mesmo? – perguntou minha tia, bancando a sonsa.

- Pelo que eu entendi, diz Férias felizes em Pindamonhangaba - prosseguiu o tio.

- Não, seus troçadores de terceira idade e categoria, diz Rê, amor de verdade não acaba.

- Mas porque uma legenda tão grande?

- Que pergunta, repolhinho, é claro que se a legenda fosse menor, numa bunda desse tamanho, ninguém enxergava nada...

E retomavam as gargalhadas infames.

Aguentei com compostura até que se esvaziassem os copos e, quando saí do seu apartamento, entrançando as pernas de tão bêbado e rosnando contra o elevador que não chegava nunca, uma intuição me fez estremecer: Cris, onde estava o Cris? Desesperado, guiei até a faculdade, mas o poste onde eu o havia deixado se encontrava espantosamente despovoado! Temia pela minha incolumidade física quando Karl soubesse que eu havia perdido o cachorro de seu chefe. Começava a chover fortemente e desisti de seguir procurando-o pelo campus. Agora era rumar para casa e esperar pelo pior.

No meio do caminho, uma luzinha amarela começou a piscar no painel do carro. Subitamente, o carro estancou no meio da rua. Girei o contato repetidas vezes, e nada de o carro pegar. Amaldiçoei esse mundo de máquinas que nos escravizam e nos deixam na mão só para deixar claro que somos absolutamente dependentes delas. Estavam livrando um complô contra mim, decerto porque no último shabbat, atrasado para a sinagoga, eu havia chutado indignado um parquímetro que se recusava a funcionar, o qual caiu como morto, sem dobrar os joelhos, no meio da calçada. Por sorte, era fim-de-semana, e não havia policiamento. Procurei outra vaga e fingi que nada tinha acontecido.

Passou então uma viatura de trânsito. É a minha salvação, pensei. Saí do carro e acenei para eles. Lavraram-me uma multa e me aconselharam a chamar urgentemente um guincho, a fim de que se procedesse à desobstrução da via pública. Disseram que prosseguiriam sua ronda e que estariam de volta em menos de uma hora, e, caso meu carro ainda estivesse lá, seria prontamente recolhido à garagem do departamento do trânsito da qual, vencidas as etapas burocráticas de praxe, e pagas as tarifas públicas, inclusive diárias de depósito veicular, poderia ser liberado em menos de três meses.

Tentei abrigar-me sob uma marquise. Esperei um pouco. Os carros poucos que passaram não se detiveram a meu aceno. Mundo cão, resmunguei. Senti que a chuva enfraquecia, olhei para o céu para me certificar, censurando intimamente o criador pela benção daquele dia de cão, quando de repente todo o conteúdo de uma calha que naquele instante se desobstruíra se despejou sobre meus olhos. Chega de protestos íntimos, então. Gritei alto nomes. Tentei discar do celular para Karl, mas a estúpida secretária virtual do aparelho pedia, num desconcertante sotaque paulistano:

- Fale agora o nome da pessoa para quem você deseja estar ligando.

- Karl – repetia- Karl.

- Por favor, tente de novo, não estou reconhecendo o nome da pessoa com que você está tentando estar se comunicando.

Vociferei minha ira contra a tecnologia digital. Tentei achar o número de Karl na agenda do telefone, mas isso era inútil como seguir placas de trânsito em São Paulo: elas lhe dão uma vaga noção de para onde você deve ir, mas, se você se fia nelas, acaba parando na frente da mesma placa. Xinguei o aparelho e toda a sua progenitura.

Uma luz se acendeu no predinho à frente do qual eu me encontrava. Dei-me conta de que estava em face da tabacaria do velho Moishe Gavin, e foi ele mesmo quem assomou à porta, esbravejando contra quem lhe roubara o sono com tanta gritaria e palavras de baixa extração. Expliquei ao vetusto patrício que estava tentando sem sucesso fazer um telefonema, mas não conseguia penetrar no cipoal de comandos da agenda telefônica. Tive de prosseguir gritando e explicar tudo duas vezes, pois o ínclito decano era surdo.

- Dê-me o portátil aqui – disse o deão, arrancando-me o aparelho da mão. Enquanto apertava três teclas com seus dedos trêmulos de matusalém, ele me perguntou:

- O que houve com o carro? – crispando os olhos baços que se esforçavam para conseguir enxergar o veículo cujo pisca-alerta reluzia na escuridão.

- Pane-motor – bradei.

- Vai passar – disse, dando-me tapinhas aos ombros e entregando-me o aparelho. Depois sumiu atrás de sua porta.

Era incrível. O aparelho chamava. Em um instante, Karl estava no outro lado da linha. Expliquei-lhe a situação, entre soluços e fungadas. Pedi que viesse imediatamente. Ao chegar, informou-me de que já havia chamado o guincho. Contei-lhe, então, com lágrimas nos olhos dissolvidas na torrente de chuva como no monólogo do androide paranoide do Blade Runner, que havia perdido Cris, que o havia procurado por toda parte e não restava esperança.

Comovido com a minha histeria, Karl procurou me tranquilizar, fazendo-me sentar no banco de seu carro. Informou-me que havia sim uma solução, Cris tinha um número de celular, é verdade!, que conectava com um chip instalado em sua coleira, através do qual poderia ser localizado por GPS. Discou então para o número do cachorro, e descobrimos que ele se encontrava são e salvo no canil da Prefeitura.

Recomposto, agradeci ao inventor daquela engenhoca localizadora por livrar-me daquele apuro. Rumamos para o departamento de zoonoses, que ainda se encontrava aberto. Lá estava o serelepe Cris, na sua jaulinha, ainda acordado, confraternizando com outros colegas canídeos. Assim como o uísque, a tecnologia que opera desgraças é a mesma que pode operar milagres, tudo é uma questão de dosagem ou approach, sentenciei.

- Toda essa história do cachorro serviu para provar de uma vez por todas que eu não sirvo para ser pai- disse, tentando vilmente explorar minha falta em proveito próprio.

- Não – contestou Karl- isso apenas comprova que a paternidade, talvez à diferença da maternidade, é menos uma vocação que uma tarefa. Mas, para evitar novos transtornos, vamos fazer o seguinte: amanhã você acorda e deixa o Cris num pet shop, para que lhe dêem um banho e passem nele remédio antipulgas. E você só vai ter que buscá-lo depois do trabalho, ou pedir que o entreguem em casa.

- Remédio antipulgas?

- Bem, depois dessa estadia no canil público, 20 chances em 20 para ele estar infestado.

Imediatamente senti comichões em todo o corpo.

- Karl, elas estão me atacando. Vamos direto para um hospital, eu sou extremamente alérgico a pulgas...

- Deixe de frescura, você é alérgico sim a banhos! – respondeu, aumentando o volume do rádio até que minhas reclamações desaparecessem sob o batuque de um hit funk.

Cris estava sentado no banco traseiro, com a cabeça entre o vão dos bancos dianteiros, e se dessedentava lambendo as minhas orelhas ensopadas. Lembrei-me então de um filme pseudocult mongol e meio mongol, a que eu assistira há alguns anos. Um cachorro, que havia sido muito maltratado pelos homens, recusava-se a morrer porque, segundo as leis cármicas, teria de reencarnar como homem. Mencionava-se uma crendice antiga, segundo a qual o cão seria a última encarnação das almas antes de acederem a uma vida humana.

Refleti que isso não fazia sentido. Mais provavelmente, deveria dar-se o contrário, pois um cão exibe todas as características de serenidade, de lealdade e de dedicação integral aos outros que perseguimos arduamente ao longo de nossas vidas, de modo que apenas depois de ter atingido a perfeição ética compendiada em tais virtudes, é que deve ser dado a um homem poder reencarnar como um cachorro.
A Moninha, ad memoriam, semper vivas!

São Paulo, 2006, sob encomenda de J.S. que especificou uma continuação de As Aventuras de um Judeu Errante tendo por tema cachorros.

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